A tendência, muito humana, de pensar no presente como o melhor de todos os tempos é simétrica da tendência oposta, também muito humana, de mitificar o passado, ou um qualquer tempo em concreto situado no passado.
As duas tendências são compreensíveis, nenhuma delas faz sentido em termos absolutos. Mas ambas, à sua maneira, têm vindo a ganhar expressão como argumentos, seja em conversas privadas seja em debates no espaço público, sobre políticas públicas, por exemplo.
O presente que vivemos é o melhor dos tempos e nenhum se lhe compara. “O melhor tempo é o presente” é, aliás, o título de um romance da prémio Nobel Nadine Gardiner, título cruelmente desmentido pelo conteúdo do livro. E um tempo passado, um qualquer que convenha ao autor do argumento de ocasião, alberga a idade de ouro da humanidade.
Ora se nenhum tempo é melhor que outro qualquer, todos são melhores do que ter tempo nenhum. Isto aplica-se ao momento que vivemos, ao país que somos, às alianças que estabelecemos.
O país corre ligeiro e ufano sob o vento fresco (apesar do calor) das hordas de turistas que nos visitam, em busca do bom tempo, da disneylândia das cidades, da segurança, sobretudo da segurança. A confiança cresce à sombra do “milagre económico” perpetrado, dizem, pelo Mourinho das Finanças, o nosso ministro da mesma pasta; e somos, sentimo-nos, invencíveis, ganhamos festivais da canção, campeonatos da Europa, regatas de remo na mão. Temos o melhor jogador de futebol do Mundo (até é verdade). E mesmo a Europa se rendeu, dispondo-se a retirar-nos de vergonhosos índexes como o dos défices excessivos.
No plano europeu, também a União Europeia fez do presente o melhor dos tempos: e Trump arrisca a impugnação, e Wilders e Le Pen chocaram contra o muro dos seus limites ideológicos, e May arrisca-se a terminar em Junho, como escrevi numa crónica recente. E o eixo franco-alemão promete regenerar a união, Merkel talvez vença outra vez e Macron ganha uma maioria absoluta com um partido criado há um ano. Um recorde.
É o melhor tempo de sempre, é o nosso tempo de hoje.
E contudo… não há muito, batemos no fundo. Portugal afundou-se numa crise com tanto de endógena – crescimento anémico, endividamento, escassa produtividade, instituições extractivas que nos empobrecem – como de exógena, à razão de uma zona euro em que entrámos impreparados e da falência do sistema financeiro global. A UE, por seu lado, estava à beira da implosão, com o fim vaticinado semana sim semana também pelos eurocépticos; nesse tempo, e foi há pouco tempo, lembravam-se tempos míticos mais prósperos, pacíficos e felizes. Tempos que nunca existiram; mas lembrá-los como se tivessem sido era a forma eficaz de criticar um presente em que as promessas antigas feneciam. Um tempo de visões derrotistas, passadistas, de ideologias nacionalistas e protecionistas, de xenofobia e de medo.
“Dantes é que era bom”. Não era, claro. O que era, como é, era o eterno desconcerto humano, o permanente e nunca terminado confronto entre quem manda e quem obedece, quem tem e quem pouco tem, quem vive feliz – ou resiste – e quem já desistiu de ser feliz, ou de resistir.
“Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos, era a idade da sabedoria, era a idade da loucura, era a época da confiança, era a época da incredulidade, era a estação das Luzes, era a estação das Trevas, era a primavera da esperança, era o inverno do desespero, tínhamos tudo à nossa frente, íamos todos directos ao Céu, íamos todos na outra direcção” (Charles Dickens, no célebre A Tale of Two Cities). Era assim e assim é, pouco mudou a natureza humana.
O país feliz de hoje, com a economia a crescer e um sentimento de confiança e triunfo, é o mesmo que há poucos anos se afundava na angústia, vergado a uma receita de austeridade e empobrecimento sem retorno aparente; a Europa esperançosa de hoje, com a promessa do relançamento da integração europeia, da reforma da zona euro e de um brexit que reforce a coesão dos restantes membros, é a mesma que há 12 meses nos diziam estar à beira do fim.
Mas nem o país feliz de hoje vai continuar feliz para sempre, nem a Europa que promete, mas treme sob a ameaça do terrorismo, da imigração sem controlo e da corrupção das elites (de algumas), têm a estabilidade e a integridade garantidas. É preciso encarar o presente com cautela e determinação, obrigando nomeadamente quem nos determina o rumo a governar sem demagogias nem súbitas amnésias sobre o que futuro pode trazer. Porque se o futuro ainda não foi, ele será o que dele fizermos, nem melhor nem pior do que outro tempo qualquer. Nele, esse lugar desconhecido, habitaremos pelo resto das nossas vidas.
E é Agora. Quando tudo corre bem ou, pelo menos, corre melhor. É agora que é preciso agir, criar condições para não se voltarem a repetir as crises do passado. Não queremos mais austeridade, e por isso não devemos permitir que cresçam de novo as bolhas do endividamento, do crédito desenfreado, das despesas públicas sem controlo; sobretudo, neste país ainda tão frágil e tão relativamente pobre, devemos expurgar de uma vez por todas, para sempre, os fenómenos da corrupção, do nepotismo, da desregulação.
E também na Europa, neste continente que é nosso, com os nossos parceiros, onde a integração dos mercados, a convergência das políticas, a solidariedade dos povos, se viram para já afastado o espectro do desmoronamento, continuam ameaçadas, é preciso agir. E Portugal, com a sua antiga tradição de mediação, com o cosmopolitismo dos seus quase 900 anos, com a experiência e a qualidade das suas gentes, pode desempenhar um papel crucial na reconstrução de uma União verdadeiramente solidária, factor de paz e progresso.
Este presente não é o melhor de todos os tempos para Portugal e para a Europa. O nosso passado não esconde nenhum segredo inconfessado de tempos incomensuravelmente felizes. Vivemos o presente a construir o futuro perfeito que queremos para os nossos filhos.
Se o presente e o passado não albergam o melhor dos tempos, talvez o futuro nos sorria. Só depende de nós e de quem nos governa. É um lugar-comum, deve ser verdadeiro.
Acreditemos na sabedoria dos velhos marinheiros: toda a bonança tem um fim. Mas há sempre um porto à proa do navio que conhece o seu rumo.