Lembra-se de quando António Costa prometeu a gratuitidade na frequência das creches para todas as crianças? Se sim, então o melhor é esquecer: não vai acontecer. É oficialmente uma promessa quebrada: a gratuitidade não será para todas as crianças — possivelmente, nem será sequer para a maioria das crianças. E se os números finais ainda não estão fechados é porque o Ministério da Segurança Social não esclarece nem publica a portaria que fará o enquadramento da lei em vigor sobre esta “gratuitidade”. Entretanto, famílias e instituições vivem na corda-bamba. Eis a cronologia de uma trapalhada.

1 A gratuitidade das creches integra a primeira linha da agenda política desde o pós-troika. E, através de abordagens diferentes ao longo do tempo, o tema consolidou-se nas campanhas e nos programas eleitorais dos partidos às eleições legislativas. Em 2019, por exemplo, do PCP ao PSD, a gratuitidade das creches constava entre as propostas eleitorais, mas não aparecia ainda nesses termos no manifesto do PS — os socialistas rejeitavam a gratuitidade total e propunham um “complemento-creche” para ajudar as famílias a suportar os custos deste serviço. Em Setembro 2021, mantinha-se assim. Até que o cenário político mudou: havia um orçamento em risco de chumbar no parlamento e uma eventual crise política à espreita. Em consonância, para satisfazer revindicações do PCP, o PS cedeu e incluiu a gratuitidade progressiva das creches (para todas as crianças) num novo pacote de medidas (23.10.2021).

2 Conhecemos a história: as medidas não foram entendidas como suficientes pelos parceiros da geringonça, o OE 2022 apresentado em Outubro de 2021 acabou chumbado e, a 4 de Novembro, o Presidente da República informou que dissolveria o parlamento e convocaria eleições. Ou seja, a partir dessa data, os partidos accionaram as suas estratégias eleitorais. E foi assim que o primeiro-ministro António Costa instalou a promessa da gratuitidade das creches no topo da sua agenda. Primeiro, clarificou o compromisso: “em três anos, teremos a total gratuitidade da frequência das creches”. Segundo, aprovou no parlamento (26.11.2021) uma iniciativa legislativa do PCP, para a gratuitidade progressiva das creches (mas numa revisão integral do texto legislativo feita pelo PS). Terceiro, colocou a medida nas “12 grandes prioridades” (é a #7) do seu programa eleitoral e inseriu-a igualmente no actual Programa de Governo.

3 Apesar das promessas e da maioria absoluta, a única legislação em vigor é a que resultou da referida iniciativa legislativa do PCP, cujo texto final foi o PS a reformular — a Lei 2/2022 (3 de Janeiro). Ora, esta lei determinou a gratuitidade gradual da frequência de creches nos seguintes termos: em 2022, “a todas as crianças que ingressem no 1º ano de creche“, em 2023 “a todas as crianças que ingressem no primeiro ano de creche e às crianças que prossigam para o 2º ano“, e em 2024 “a todas as crianças que ingressem no primeiro ano de creche e às crianças que prossigam para o 2º e 3º ano“. Todas as crianças mesmo? Não é bem assim: a gratuitidade só é extensível às “crianças que frequentem creche abrangida pelo sistema de cooperação”. Traduzindo: a “gratuitidade” abrange apenas as vagas que o Estado já contratualizou com as IPSS. O diabo está nos detalhes.

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4 Isso significa que haverá crianças excluídas? Sim, cerca de metade. De acordo com dados do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério da Segurança Social, a taxa de cobertura das respostas da Segurança Social correspondia a 48%, em 2020. Nos distritos com mais população, a taxa de cobertura da rede pública de creches chega a valores inferiores: 45% em Setúbal, 44% em Lisboa, 35% no Porto. Ou seja, todas as crianças sem vaga na rede pública (que inclui as IPSS com acordo de comparticipação) continuarão a ter de suportar os custos da frequência da creche num estabelecimento privado. E, porque estamos a falar de cerca de metade das crianças, esse grupo integra forçosamente milhares de famílias em situações de carência.

5 Toda a embrulhada tem raiz ideológica: não há vagas gratuitas para mais crianças porque o governo rejeita alargar a rede através do sector privado. Perante a insatisfação das famílias, o governo tem reiterado anúncios de aberturas de novas vagas (+20 mil) e de modernização de outras já existentes (18 mil), o que demonstra que prefere investir em infra-estruturas estatais em vez financiar desde já a oferta existente no sector privado. A consequência é óbvia: a construção de infra-estrutura demora tempo (deixando crianças sem acesso e à espera) e, em muitos casos, até sai mais cara ao Estado do que a contratualização com privados.

6 Actualmente, apesar de estarmos colados ao período de inscrições, reina uma confusão sobre as novas regras, em que nem as instituições sabem exactamente o que fazer, nem as famílias sabem com que contar. Por um lado, as instituições desconheciam até há dias os valores que o Estado pagará por criança comparticipada — têm de fazer contas à vida antes de aderir ou abrir mais vagas. Por outro lado, muitas famílias permanecem na dúvida sobre a sua elegibilidade (nomeadamente em função das idades das crianças) — terão ou não de pagar para ter um filho na creche? Nas autoridades públicas, não há respostas esclarecedoras.

7 A literatura científica sobre os benefícios futuros (sociais, económicos, académicos) da frequência de creches é extremamente vasta e está consolidada. Sabemos que as crianças que frequentam creches elevam a sua probabilidade de sucesso ao longo da vida. Ou seja, na óptica das políticas públicas, sabemos que se trata de um investimento público com enormes retornos sociais. É, por isso, realmente lastimável termos chegado à situação actual. Afinal, o governo não está apenas a incumprir uma promessa eleitoral; está, para além disso, a encurtar os horizontes e a limitar o desenvolvimento potencial de milhares de crianças.