No filme “Variações” há um fragmento de diálogo que ficou a fazer eco em mim. Aliás é mais uma palavra, ou um conceito, nem chega a ser um diálogo. A cena passa-se nos bastidores de uma editora discográfica, entre António Variações e Luís Vitta, o jornalista brasileiro que vive em Portugal e se torna de tal maneira fã da voz do barbeiro que faz tudo para promover a carreira musical do amigo.
– Cuidado que eles são comparativistas!
Adverte Luís Vitta, quando um Variações ainda meio inseguro se interroga sobre o material que deve entregar na editora, assim como sobre a atitude que deve cultivar perante quem o vai receber.
‘Comparativista’ é certamente uma terminologia nova para portugueses de Portugal, mas é de tal maneira eloquente que vale a pena focar no adjetivo que o brasileiro do filme usa. Isto porque toda a comparação tem o seu lado perverso, sobretudo quando se trata de comparação entre seres humanos. Comparar pessoas sempre deu maus resultados. Senão vejamos.
Muitos começam a ser comparados desde cedo. Em casa, nas famílias, a tendência para comparar é de tal forma irreprimível que chega a parecer natural. Mas não é. Os pais comparam facilmente feitios dos filhos e nunca o fazem por maldade. Acontece. É mais forte que nós. E quem diz feitios, diz talentos, competências, atitudes, gostos, traços de carater, inclinações e por aí adiante.
O problema da comparação humana é que gera grandes frustrações e provoca enormes inseguranças. Deixa marcas.
Penso que todos já comparámos ou fizemos comparações destas, mas também já fomos vítimas de comparações. Pior ainda, em fases de pouca autoconfiança, nós próprios somos os primeiros a comparar-nos com alguém real ou imaginário. Ou seja, todos sabemos do que estamos a falar quando falamos de ‘comparativistas’ e ‘comparativismos’.
Sei de muito bons pais e muito boas mães que comparam os seus filhos por bem, tentando sempre puxar pelos que estão a ser comparados. Nunca me esqueço de uma história que ouvi a quatro filhos, todos eles muito amados pelos seus pais, e se resume em poucas palavras: andaram todos na mesma escola e também no mesmo liceu e, sempre que os mais novos chegavam com a nota de um teste a casa, os pais abstinham-se de elogiar ou criticar e só o faziam depois de irem comparar as notas com as dos outros irmãos, quando eram da mesma idade e andavam no mesmo ano.
Acontece que estes, tal como todos os irmãos do mundo, tinham um set de talentos único. Não eram todos bons a Matemática, nem tinham que o ser. Também não gostavam todos dos mesmos desportos nem tinham a mesma paixão pelas mesmas matérias. Cada um tinha a sua performance académica, cada um evoluía ao seu ritmo e nenhum merecia ser comparado com os outros. Mas eram. Sempre.
As marcas que esta atitude de permanente comparação de notas deixou nos irmãos mais novos desta fratria foi a certeza de nunca estarem à altura. De quem? Não sabemos. Quando eram crianças e jovens, seria uns dos outros, mas acima de tudo à altura de agradar aos pais e merecer uma crítica ou um elogio que não fossem ‘comparativistas’ e, por isso mesmo, em ‘segunda mão’. Na idade adulta confessam que continuam muitas vezes a sentir-se inseguros e ainda como que sob comparação.
Podemos comparar objetos e projetos, mas nunca pessoas. Sempre que compararmos alguém (ou nos deixarmos comparar!) estamos a subtrair valor, jamais a acrescentar. Podemos, isso sim, funcionar com referências. Devemos, até procurar essas mesmas pessoas de referência, mas nunca para nos compararmos com elas. Simplesmente para funcionarem como modelos inspiradores e, porventura, transformadores ou, quem sabe, pontos de superação. Jamais de comparação.
Estamos no auge da rentrée e hoje celebra-se o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio. Perguntam o que tem a ver uma coisa com a outra? Nada. E tudo.
Na escola há muita comparação perversa e a relação que muitos pais estabelecem com os seus próprios filhos (e muitos professores com os seus alunos e muitos amigos e pares com outros pares e amigos!) passa vezes demais pelas notas e pelo seu valor académico. Pelo seu desempenho ao longo do ano letivo. Ora acontece que ninguém, rigorosamente ninguém pode ser confundido com a sua nota (que seria do génio Einstein e de tantos outros…) e, muito menos, reduzido a essa expressão mínima. Mesmo quando a nota é máxima, não diz tudo sobre a pessoa.
Nesta lógica e porque existe muita competição e também muito ‘burnout’ nas escolas e universidades, há cada vez mais casos de depressão e outras patologias associadas à falta de sentido de realização, à incapacidade de manter uma performance de topo e/ou uma nota elevada. Quando a tudo isto se associa um ‘comparativismo’ aceso, militante, as coisas pioram e muitas pessoas afundam. E desistem.
Nunca poderemos dizer que a comparação entre pessoas leva à depressão e, ainda menos, ao suicídio, mas é vital ter a noção de que a comparação leva fatalmente à auto depreciação. Podemos gostar muito menos de nós porque passámos a comparar-nos com outros. Ou porque alguém passa a vida a comparar-nos.
E era este o sentido da advertência de Luís ao seu amigo António. O conselho era de sábio porque ele sabia, à partida, que a tendência do editor seria comparar a voz com outros músicos e, nesta comparação, ele sairia certamente a perder. Vitta queria que Variações fosse aceite na sua originalidade e que a sua voz fosse valorizada por ser única. Conseguiu. Conseguiram.