A chamada Cancel Culture, ou Cultura do Cancelamento, é o fenómeno segundo o qual uma pessoa ou grupo são expulsos de uma posição de notoriedade social devido a atitudes consideradas controversas ou inadequadas.
Este fenómeno surgiu acoplado ao movimento Me Too, em 2017, e nessa altura a intenção primordial era não mais do que ostracizar os agressores, ora denunciados pelas vítimas, exigindo que exibissem comportamentos de reparação e de arrependimento para com as mesmas.
Mas depressa a dita política do cancelamento alastrou, especialmente nos EUA e no Reino Unido, tornando-se uma prática particularmente violenta e descontrolada, passando os ditos cancelamentos a ter uma abrangência que nada tinha a ver com a matéria inerente ao movimento Me Too, que outrora os havia despoletado.
À medida que o tempo foi passando o fenómeno encontrou nas redes sociais o hospedeiro perfeito para poder proliferar, contribuindo para o crescimento de uma onda de intolerância atroz, que submergia todos quantos se lhe atravessavam no caminho, mesmo que para isso, muitas das vezes, nada tenham feito a não ser serem permeáveis a uma certa dose de mesquinhez alheia, desinformação ou mera má interpretação das suas acções.
A Cultura do Cancelamento foi ganhando poder impulsionada pelo resguardo garantido do digital, que lhe permitiu garantia para ostracizar, humilhar e cancelar outrem com relativa facilidade e indesmentível força.
Muitos dirão que a dita Cultura do Cancelamento é uma forma de activismo.
Mas será mesmo?
Um activista tem uma opinião bem formada sobre algo e as suas acções tendem a ir no sentido do benefício último da sociedade. A Cultura do Cancelamento, bem como tudo que lhe está associado, assemelha-se mais a um linchamento, uma forma arcaica de justiça privada, de fazer cumprir a função jurisdicional sem a necessidade de esta estar adstrita a determinados órgãos de um dado Estado, através de um sistema organizado de justiça e, sendo assim, perante esta evidência, a Cultura do Cancelamento pode facilmente ser sinónimo de abuso e excessos.
No nosso país a Cultura do Cancelamento ainda não tem a força suficiente para ser considerada uma tendência preponderante, mas é inegável que é um fenómeno que já se vislumbra e imprime a sua marca na sociedade.
A preocupação com este fenómeno a nível global é tal que começam a desenvolver-se esforços e movimentações no sentido de poder cancelar a Cultura do Cancelamento.
Será isso possível?
Poderemos auspiciar vir a fazer “scroll” sem que sejamos imediatamente bafejados por quem, com argumentos débeis e fundamentação mirrada, nos quer toldar o pensamento? Poderemos ser confrontados com juízos críticos sem o recurso ao ódio exacerbado, ao fundamentalismo sem qualquer fundamentação válida?
Será difícil reprimir esta tendência.
Sabe-se desde já que a Cultura do Cancelamento contribui actualmente para que haja opiniões mais contidas por parte de quem na arena pública as partilha. As pessoas tendem agora a ser menos genuínas para acautelarem não serem abalroadas pela tirania desta tendência. Especialmente quem trabalha de forma exclusiva no sector digital ou se serve dele, de alguma forma, no decurso das suas funções, o cuidado foi redobrado, pois um cancelamento, mesmo que injusto ou infundado, pode arruinar a reputação de qualquer pessoa, assim como pode influenciar contratos e parcerias com marcas e afectar assim, irremediavelmente, os rendimentos pecuniários de quem for visado.
A Cultura de Cancelamento está hoje em dia associada a uma perigosa narrativa de desinformação que tem de ser combatida a todo o custo, mas, concomitantemente, também está assente num enorme fosso geracional que se foi alargando à medida que se foram implementando mudanças, muitas delas disruptivas, no que se refere ao género, à identidade sexual, à política, etc..
Aquilo que eram comportamentos adequados passaram, em virtude dessas mudanças repentinas, a ser vistos como ofensivos para determinados sectores da sociedade. Disseminou-se, aliada a isso, a existência de uma certa vigilância social, cultural, política com o propósito claro de exterminar os hábitos de outrora, que hoje mais não são do que atitudes e comportamentos inadequados e ofensivos.
Sendo as ferramentas digitais, massiva e magistralmente utilizadas pelas gerações mais jovens e sendo este um meio comunicacional de inequívoca abrangência e alcance, o debate público que poderia existir a respeito de determinadas temáticas parece tendencialmente decidido a favor dos mais jovens e a cultura de cancelamento de pessoas com sensibilidades diferentes parece estar irremediavelmente assegurada.
A liberdade individual, sobretudo no digital, tem de ser, mais do que nunca, protegida. A empatia e a necessidade de ler determinados acontecimentos à luz da época em que ocorreram é um imperativo tal como é o respeito por opiniões, comportamentos e posicionamentos diferentes do nosso.
Todos cabemos no mundo sem termos que nos cancelar.