Nos últimos dias, com mais ou menos confusão, menor ou maior êxito, tem-se avançado na vacinação, a única medida potencialmente efetiva para controlo da morbilidade e mortalidade nesta fase pandémica. De todas as medidas tontas que só demonstram como não perceberam que o programa de reconfinamento, a existir, não poderia ser o simples recuo sobre os passos do desconfinamento, a única eventualmente lógica, se aplicada, seria a imposição de recolher noturno. Ainda estamos para ver se afinal era mais um conselho ou uma imposição. Exigir testes para entrar num restaurante, é só estúpido e a estultícia não é apanágio nacional. Ainda mais irracional se só tiver de ser ao jantar e ao fim-de-semana. Tratem de vacinar e deixem-se de parvoíces.
Vá lá que terão percebido a urgência, muito imposta pela presidencial recusa em promover mais estados de emergência, de fazer uma lei para responder a ameaças extremas à saúde pública, infecciosas ou outras. Note-se que a legislação a criar terá de cobrir todas as necessidades, incluindo a de poder internar e isolar, por ordem judicial, potenciais infetantes sem que exista epidemia ou pandemia. Mas em vez de porem os juristas dos gabinetes a trabalhar, nomearam uma comissão. Nada de novo. Espero que as suas ideias sejam mais respeitadas do que foram as propostas para a Lei de Bases da Saúde que a comissão da Dra. Maria de Belém porfiadamente fez e a Assembleia essencialmente ignorou.
Uma saudação para a senhora ministra da Saúde a quem a violência dos tempos tem ensinado muito. Impôs a sua vontade de falar menos e isso permite-lhe só aparecer para dizer o que é preciso ser dito. Matou, muito a tempo, quaisquer rumores que indiciassem a sua saída por vontade própria. Não fez mais promessa nenhuma, mas afirmou que não abandonará o cargo. Foi útil tê-lo dito agora, como será útil que reafirme, com firmeza, que quem manda na vacinação é o Ministério da Saúde e que quem vacina é o seu pessoal. Um caudilho vacinal, com sonho de voos políticos, é o que não precisamos e não queremos. Portugal é Europa, não é um País de General Tapioca. No entanto, quando confrontada com a capacidade de resposta do SNS, deve ter o cuidado de não augurar medidas que possam alienar a boa vontade dos profissionais, mesmo que sejam populares. Uma coisa é exigir que a lei seja aplicada e as férias sejam programadas, outra será reconhecer um fracasso organizacional e obrigar ao cancelamento das férias de pessoal física e emocionalmente esgotado.
Sendo difícil dizer mais, recomendo um dos melhores textos que já li sobre o controlo da pandemia. Há lá muita coisa que eu já escrevi e sinto-me melhor, embora só marginalmente, por não estar só. Estou ainda mais à vontade para recomendar o texto porque não conheço o autor. Não tenho nenhum conflito de interesse.
Ora, são os conflitos e os interesses que me levam à segunda parte desta opinião.
Muito se escreveu sobre jobs e boys, jobs for the boys e a CRESAP.
A verdade é que nunca gostei, não simpatizo com a CRESAP. Em devido tempo, quando a minha opinião teria maior valor institucional, manifestei as minhas reservas quanto a este modelo de seleção de pessoas para cargos de direção na administração direta e indireta do Estado.
A ideia era boa dentro de limites que não deveriam ter sido ultrapassados. O modelo, nem tanto. Eu sou um daqueles “botas de elástico” que acredita na confiança como um dos dois valores mais importantes para a relação de trabalho que resulta da nomeação de um dirigente por parte de um membro do Governo. O segundo valor, como o Dr. Paulo Macedo do alto da sapiência com que tanto me ensinou não se cansava de repetir, é a seriedade. “Meu caro Fernando, ser sério é posto”. Vindo do Fisco ele sabia bem como a seriedade é a base da confiança.
O Professor João Bilhim, de inquestionável valia pessoal e profissional, afirmou recentemente, com razão, que as nomeações políticas permitem que “a classe política vá fazer tirocínio”. Tirocínio faz falta a muitos políticos que chegam a lugares de decisão sem nunca antes terem experimentado a dureza da Administração Pública. O problema não está no “tirocínio”. Poderá estar na falta de qualidades dos tirocinados.
Por um lado, há casos concretos de cargos, como sejam as nomeações para desempenho de lugares em gabinetes de Governo, que só podem ser exercidos por pessoas em quem se deposite confiança plena e de quem se espere lealdade e trabalho. Não são passíveis de outra avaliação prévia que não seja a de quem nomeia, tal como acontece na Casa Civil do Presidente da República. Não se deveria estranhar que haja governantes, eles próprios militantes partidários, que prefiram nomear correligionários. No meu caso, confesso, nunca liguei a isso e ainda hoje não faço ideia se alguma das pessoas que me acompanhou e aturou era militante de alguma coisa. Eram todos competentes e muitos transitaram de gabinetes do governo do PS, alguns tinham longas experiências em sucessivos governos de PS, PSD e CDS, e outros eram jovens profissionais, incluindo académicos. Vá lá, admito, havia uma maioria de sportinguistas.
Contudo, já nessa altura houve quem escrevesse impropérios a propósito dos ordenados que eram pagos a alguns dos talentosos e muito competentes jovens que aceitaram trabalhar comigo. Note-se que até eram salários “cortados”, porque nos tempos da troika era assim. Mas a repulsa pela ideia de que um jovem pode ser capaz ainda impera em muitos setores e não será por acaso que se fala em boys, mesmo que na maioria até sejam girls.
Depois, há o caso dos dirigentes superiores. Durante anos se protestou porque havia a tendência para nomear em função da filiação política e não da competência. A CRESAP foi criada para obviar a isso. Mas a verdade é que, além de haver uma transferência de poder discricionário para Comissão com a consequente perda de capacidade primária de escolha pelo membro do Governo, a qualidade dos dirigentes nomeados não melhorou por serem passados pelo crivo da CRESAP. Casos houve, em que perdemos excelentes candidatos, por a CRESAP ter entendido que não seriam os mais capazes, e também nos sucedeu acabar por nomear a pessoa errada, com graves falhas de caráter, por não haver melhor na lista proposta pela comissão de recrutamento. Conclusão, a CRESAP não é panaceia.
É claro que conhecedores das insuficiências da CRESAP e do recrutamento de dirigentes para a função pública em geral, a tendência defensiva de quem está no Governo é deixar estar quem está, ainda que em “regime de substituição”. Não é compadrio, é senso comum e é honesto reconhecê-lo.
Sendo assim, havendo um problema na nomeação de dirigentes para a administração pública e empresas EPE, onde é imperativo eliminar as nomeações a partir das listas de compadres que os dirigentes partidários nacionais ou locais vão deixando nas secretárias dos ministros, havendo obrigação de nomear sempre os mais competentes entre as escolhas possíveis e com a ideia de que são cada vez menos os que querem sacrificar-se pelo interesse público, como fazer as escolhas e nomeações?
A minha sugestão, no imediato, seria encontrar um sistema de validação de competências académicas e profissionais que poderá estar numa CRESAP “like”, sem que esta comissão faça escolhas de short lists a partir de entrevistas. Simplesmente eliminaria candidatos sem perfil suficiente. A CRESAP deveria ter um modelo definido previamente e mais transparente de qualificações académicas e experiência prévia exigíveis, tal como o número de listados não deveria ter limite. Parece-me mesmo que em Portugal se tende a desvalorizar a peça curricular mais importante que é a carta de recomendação, a prova de por onde passou, o que fez e como o fez. Ser portador de uma carta de referências assinada por determinada personalidade pode dizer mais sobre um candidato, em muitos sentidos, do que um doutoramento na Ivy League.
Não seria preciso dizê-lo, embora atos recentes de quem nos governa me obrigue a isso, a consanguinidade, endogamia e laços resultantes do matrimónio deveriam ser eliminados das nomeações. Poder-se-á perder capacidade de ter alguns dos melhores entre os melhores? Pode, mas a decência é um valor que não tolera suspeita. Louve-se, pela lisura e honestidade, o caso do Professor Jorge Simões que renunciou ao cargo de Presidente do Conselho Nacional de Saúde quando a sua mulher aceitou ser ministra da Saúde. Ganhou liberdade e espaço de intervenção e é tudo claro. O bom senso prevaleceu. Coisa rara nos nossos dias.
O problema não está nos jobs nem nos boys. Está, apenas e somente, se os boys e girls não são os mais certos para o job. A médio e longo prazo será preciso rever e recriar carreiras de funcionários públicos destinados a seguir o serviço da coisa pública, com a devida remuneração e distinção. Precisamos dos nossos Mr. Humphrey Appleby. O Estado tem de ser um recrutador ativo e competitivo à saída das universidades e politécnicos. E depois, para que a formação não se perca, não estagne, temos de recriar escolas para a administração pública, grandes écoles, onde se formem pessoas e competências. Temos de, como o Dr. Paulo Macedo fez e o Prof. Correia de Campos antes dele, promover a formação contínua dos dirigentes. Em suma, se querem melhores dirigentes, recrutem-nos e cativem-nos.
Os governos mudam, a administração fica. Tive a enorme e irrepetível sorte de ter trabalhado para e com grandes servidores públicos. Em todos encontrei ideias e vontades. Com todos, sem exceção, aprendi muito. Em nenhum deles me apercebi de que a sua escolha do quadrado no boletim de voto influenciasse o seu desempenho.
Mas é evidente que o problema de base está na desqualificação dos agentes políticos e na ocupação dos partidos por gente sem nenhuma outra opção que não seja a de medrarem com o cartão de militante. Começam nas juventudes e acabam no Governo. Acabar com os partidos seria matar a democracia. Logo, só nos resta esperar que os partidos sejam melhores e com pessoas mais qualificadas. Como? Não sei e talvez ninguém saiba. Julgo que existirão ter partes essenciais para o processo de consolidação de uma democracia e de Estado com mais qualidade. Quem sabe, a mudança do sistema eleitoral em que as escolhas passassem a ser de pessoas concretas e não de listas de serventias pudesse ajudar? Uma coisa é certa: enquanto a militância partidária continuar a ter o baixo nível que generalizadamente tem, estamos condenados a ficar com deputados medíocres, autarcas incapazes e governantes incompetentes. A segunda parte da equação, obviamente, passa por ter um eleitorado exigente, capaz de não escolher os piores, desconfiado de demagogos, atento às mentiras e disposto à intervenção cívica construtiva. A terceira parte, o mais valioso esteio da democracia, é ter um sistema judicial célere, consequente e justo.