“Defendendo a Democracia numa era de disrupção digital”, foi o título da 20ª edição da Palestra Anual Alexis de Tocqueville (do IEP-UCP) que teve lugar na passada quinta-feira na Universidade Católica em Lisboa. O tema dificilmente poderia ser mais actual. E o orador dificilmente poderia ser mais adequado ao tema: Christopher Walker é vice-presidente do National Endowment for Democracy, com sede em Washington, DC — uma das mais influentes instituições dedicadas à causa democrática no mundo.

Não é possível neste espaço reproduzir o denso argumento apresentado por Chris Walker. Mas alguns passos da sua palestra talvez possam ser salientados. Basicamente, Chris Walker alertou-nos para que a esperança liberal-democrática na chamada “revolução da internet” deve ser profundamente re-avaliada — sobretudo, embora não exclusivamente, devido à capacidade de manipulação e controlo das chamadas “redes sociais” por parte de regimes autoritários, sobretudo a Rússia, a China e o Irão.

Mas, antes disso, é importante ter uma ideia da gigantesca revolução digital em curso. Limito-me aqui a citar apenas alguns dos inúmeros dados fornecidos por Chris Walker.

Começou ele por recordar que o Facebook, tal como é conhecido hoje, foi apenas lançado em 2005, tal como o YouTube. Em 2006 apareceu o Twitter. E, embora o Google tenha sido lançado antes (em 1999), na verdade “descolou” apenas em meados da década de 2000. Entretanto, os resultados são incríveis:

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Os dados referentes a 2019 indicam que 53,6% da população mundial usava a internet no ano passado. Diariamente, cerca de 2.26 mil milhões de pessoas usam um serviço Facebook (incluindo Facebook, Instagram e WhatsApp). Utilizadores do YouTube em 88 países seguem 4 mil milhões de vídeos por dia e descarregam 60 horas de novos vídeos por minuto.

Embora o crescimento do número de utilizadores do Facebook tenha desacelerado recentemente nos EUA e partes da Europa, continua a crescer na Índia, Indonésia e Filipinas. Em África, o uso da internet cresceu de 19 milhões de pessoas em 2005 para 294 milhões neste ano de 2020. Na China, mais de 800 milhões de pessoas usam a internet. A aplicação chinesa WeChat tem actualmente 1,15 mil milhões de utilizadores à escala global.

Entretanto, este incrível crescimento dos meios digitais tem sido acompanhado pelo declínio dos órgãos de comunicação social clássicos. No caso dos EUA, para citar apenas um exemplo, a circulação da imprensa diária desceu de cerca 60 milhões na década de 1980 para 28 milhões em 2018. Quanto às receitas de publicidade dos jornais impressos, desceu de cerca de 50 mil milhões de dólares em 2005 para 18 mil milhões em 2017.

Simultaneamente, os regimes autoritários, sobretudo da Rússia, China e Irão têm investido quantias gigantescas em sistemas digitais centralmente comandados — que, por um lado, emitem contra-informação e propaganda, e, por outro, policiam o espaço e as comunicações descentralizadas digitais.

A concluir, disse Christopher Walker:

“Não podemos colocar o relógio a andar para trás nem ignorar os complexos desafios à democracia que emergem na era digital. Também não podemos voltar a fechar na garrafa o génio das redes sociais. Mas podemos, no entanto, trabalhar para modificar o comportamento do génio e oferecer melhores incentivos para comportamentos decentes no contexto digital. Basicamente, isto teria de incluir maiores freios e contrapesos (“checks and balances”), e maior prestação de contas (“accountability”) por parte daqueles que fornecem informação no contexto contemporâneo”.

Devo talvez acrescentar que subscrevo inteiramente as preocupações de Chris Walker, sobretudo quanto à manipulação do espaço digital pelos regimes autocráticos anti-ocidentais, sobretudo a Rússia, a China e o Irão. Mas tenho um olhar menos pessimista quanto ao impacto das redes sociais no Ocidente demo-liberal.

Em primeiro lugar, porque praticamente não as frequento. Em segundo lugar, e fundamentalmente, porque acredito (até certo ponto) na clássica “mão invisível” de Adam Smith: deixados em paz e liberdade pelas burocracias estatais centralizadas, os indivíduos e as famílias em interacção descentralizada sob a lei tendem a gerar mecanismos de auto-correcção. Um deles, por exemplo, poderá vir a ser a re-emergência de “clubes de leitura dos clássicos e de não utilizadores das redes sociais”. Outros clubes espontâneos que poderão vir a emergir em breve serão “clubes politicamente incorrectos contra o uso de sapatos de ténis (fora dos clubes de ténis)”, ou ainda “clubes politicamente incorrectos a favor da restauração do discurso livre nas universidades”. São dois temas particularmente cortantes para os actuais estudantes “woke” de Oxford.

Em suma, creio que a “mão invisível” ainda funciona. Na última terça-feira, por exemplo, os Sandinistas do sr. Sanders tiveram na América uma desagradável surpresa (que eu aqui previa, na crónica da semana passada, apenas para Novembro). E, como recordei na mesma crónica, os radicais anti-semitas do sr. Corbyn receberam uma bela lição dos eleitores nas mais recentes eleições britânicas. Por outras palavras: “Keep Calm and Carry On”.