O dinheiro centraliza o poder e incentiva a guerra. Sendo a tecnologia nuclear letal à escala global, a descentralização do dinheiro é a única hipótese de evitar a autodestruição da humanidade. Graças a Deus ou por sorte (fica à consideração do leitor), outra poderosa tecnologia vem dar-nos esperança no momento em que dela mais precisamos.

Há notícias de que o Bitcoin está a ser usado como recompensa para soldados que baixem as armas na guerra pela Ucrânia. Por outro lado, teme-se que os russos utilizem as criptomoedas para contornar as sanções que lhes estão a ser impostas. Utilizações tão díspares tornam estas moedas digitais politicamente intrigantes.

Para entender o principal sistema de incentivos da humanidade convém perceber três coisas: em primeiro lugar, o dinheiro é uma tecnologia. Em segundo lugar, as tecnologias não são boas ou más, mas sim mais ou menos eficazes. Em terceiro lugar, é a eficácia das tecnologias que vai traçando o rumo da história.

As inovações tecnológicas estabelecem o percurso da humanidade. Assim é desde a pedra lascada, passando pela agricultura e as revoluções industriais, até chegar à energia nuclear e aos novos avanços na tecnologia da confiança que é o dinheiro.

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A tecnologia do dinheiro tem sido imperturbável à escala global: o capital mundial é cego, guiado exclusivamente por indicadores de rendibilidade. O dinheiro conta indistintamente no PIB de uma nação: armamento, medicamentos ou alimentos, tudo soma por igual. Representando todo o valor humano de forma indiferenciada, o dinheiro a que nos temos habituado não exprime a consciência comunitária.

Os resultados da cegueira do dinheiro e da miopia do poder central são evidentes. Por exemplo, na Ucrânia luta-se pela liberdade que surge ameaçada pela consciência (centralizada) de um autocrata que faz desumanamente a guerra, enquanto a consciência (descentralizada) da comunidade internacional faz o que pode num jogo viciado.

As tecnologias são hoje tão poderosas que só podemos depositar confiança política nas decisões resultantes de consensos alargados envolvendo milhares de consciências humanas. Felizmente, já existe a tecnologia necessária para agilizar tal governança. As redes blockchain fazem à confiança o mesmo que a Internet faz à informação. Se esta inovação tecnológica for bem utilizada, a era da informação dará lugar à era da confiança.

As tecnologias têm ajudado as pessoas. No entanto, todas elas contribuíram para centralizar a riqueza e o poder ao longo dos tempos, sendo que colocar os ovos todos no mesmo cesto comporta riscos proporcionais ao poder dessas mesmas tecnologias. No entanto, observando as implicações da primeira tecnologia descentralizadora da história, percebemos que a recém-chegada confiança distribuída mostra como reformar o dinheiro e a lógica do poder.

Está matematicamente provado que a descentralização do dinheiro funciona impecavelmente (senão as criptomoedas nada valeriam), sendo que o potencial transformador da tecnologia blockchain transcende a área financeira; ao facilitar a auto-organização das comunidades, aliviando as pessoas do fardo da confiança depositada nos representantes do povo, esta tecnologia descentralizadora pode desempenhar um papel decisivo na reforma do sistema político e instauração de uma democracia participativa.

Apesar de contabilizar o valor humano numa única dimensão, sabemos que o dinheiro é imprescindível. Os bancos têm sido parte integrante da melhor tecnologia do dinheiro disponível até há bem pouco tempo. Por exemplo, praticamente todo o comércio internacional é realizado entre desconhecidos e a intermediação bancária sempre foi indispensável para avalizar tais transações, sendo que esses e muitos outros negócios teriam ficado por realizar caso os bancos não fornecessem crédito e liquidez. No entanto, surgiu uma forma automática de garantir a segurança das transações mediante a instituição de confiança direta entre as partes.

Este novo mecanismo de confiança comporta menores custos de transação do que a anterior tecnologia do dinheiro, dispensando o contributo de intermediários confiáveis. Por isso, caminhamos para uma desintermediação financeira protagonizada por moedas muito diferentes daquelas a que estamos habituados.

A concretização de acordos em redes blockchain só depende de protocolos informáticos, pelo que os contratos firmados nestas redes autoexecutáveis (smart contracts) são a forma mais inteligente e competitiva de transacionar. Ora, sendo a criptografia um ramo da matemática criado para se comunicar em ambientes hostis, compreende-se que apenas nela possamos confiar dado o estado em que o mundo se encontra.

Nos próximos anos, estes contratos surtirão efeito instantâneo no mundo real através de dispositivos ligados a redes blockchain. Na esfera militar, por exemplo, a confiança distribuída em rede permitirá dispensar cadeias de comando e articular, com toda a precisão, dispositivos bélicos equipados com inteligência artificial. Certamente, não queremos que tal inteligência ouça a singular consciência de autocratas e ditadores. Infelizmente, é o que acontecerá caso não se reforme o sistema de incentivos humanos.

As moedas digitais serão programadas com recurso à inteligência artificial e ao cruzamento da informação proveniente de bases de dados gigantescas. A versão centralizada deste novo tipo de dinheiro consiste nas moedas digitais dos bancos centrais (CBDC), algumas em circulação e outras ainda na forja.

Nos países onde as CBDC venham a ser a única alternativa monetária, não haverá concorrência de moedas digitais descentralizadas ou criptomoedas. Num tal monopólio, a consciência do dinheiro será única e exclusivamente ditada pelo poder instituído. Tais moedas transformar-se-ão nas senhas de racionamento da era digital. Quanto ao mundo livre, apenas a liberalização das moedas digitais programáveis poderá proteger a iniciativa privada e o sistema de mercado.

Portanto, não se trata só de reformar o dinheiro para travar a ameaça nuclear de “recursos estratégicos” (que ironia esta expressão) desapaixonadamente contabilizados no PIB dos países mais poderosos; mesmo que o dissuasor equilíbrio do medo vá adiando as piores consequências da atual roleta russa, também a privacidade, a democracia e a liberdade não se revelarão compatíveis com moedas digitais centralizadas e controladas pelo estado.

Entretanto, as criptomoedas vão sendo descritas como as más da fita. Por exemplo, aponta-se o dedo ao Bitcoin como sendo uma moeda de refúgio para a Rússia contornar as sanções financeiras que lhe foram impostas pela consciência coletiva do mundo livre. É verdade que essa probabilidade existe (porque as criptomoedas são descentralizadas), mas, será que um regime autocrático correria o risco de as pessoas se habituarem a tamanha liberdade? Afinal, o Bitcoin e demais criptomoedas podem ajudar, sobretudo quem pensa pela sua própria cabeça e sabe que a guerra não é sua.

As criptomoedas devolvem às pessoas a liberdade de criarem símbolos de valor (tokens) e transacionar entre si de acordo com os ditames das suas próprias consciências. Talvez o receio de que os cidadãos tomem consciência de que o dinheiro recuperou a visão possa explicar a constante desinformação e relativa indiferença perante um assunto tão importante para a humanidade.

A guerra na Ucrânia evidencia a ânsia de liberdade e a capacidade de auto-organização das pessoas. As comunidades mobilizam-se por causas justas, e se já o fazem com o dinheiro cego de que atualmente dispõem, imagine-se o que farão com moedas apadrinhadas pela sociedade civil; um dinheiro que permita a objeção de consciência face à ambição do poder central e faça valer a lucidez da consciência comunitária.

A livre concorrência entre criptomoedas é a forma ideal de exprimir financeiramente a consciência humana e separar o trigo do joio no importante capítulo dos incentivos humanos. Penso que a proliferação de sistemas monetários descentralizados criará ecossistemas socioeconómicos onde se concilia o mérito individual com a eficácia da ação coletiva, promovendo a inovação, o empreendedorismo ético e a sustentabilidade.

Infelizmente, o atraso na compreensão destas matérias, sobretudo em tempos de mudança tão vertiginosa, torna provável um cenário de proibição ou boicote das criptomoedas. Neste caso, teremos apenas CBDC instaladas nos smartphones dos cidadãos e estaremos perante uma desintermediação política tendencialmente antidemocrática. A possibilidade de condicionar politicamente a carteira digital de qualquer cidadão trará uma granularidade nunca vista em política “monetária” (uso aspas porque as moedas eram outra coisa), significando, em termos práticos, o fim da separação de poderes tão cara à democracia.

As tecnologias devem servir as comunidades e não os desígnios do poder, sendo que a evolução tecnológica tornou a descentralização digital imperativa. Claro que devemos começar esta descentralização no próximo sistema de incentivos da humanidade: as moedas digitais.

A administração ética do poder digital exige consensos alargados na tomada de decisão. Juntando a mão invisível do mercado à divina matemática, as criptomoedas serão alinhadas segundo o escrutínio de milhares de consciências e interesses individuais, representando muito melhor os valores humanos do que o dinheiro atual. Pelo contrário, em países que proíbam as criptomoedas, as pessoas terão de cingir-se à utilização de um dinheiro de consciência cada vez mais pesada.

Precisamos de inteira liberdade de movimentos no mundo real do dinheiro digital. É um lugar demasiado perigoso para termos as mãos atadas por consciências toldadas pela vertigem do poder.