O novo coronavírus, apesar de novo, dispensa apresentações: tem feito, desde o início do ano, capas (e a quase totalidade das páginas) dos jornais pelo mundo inteiro. Fala-se, desde então – e com intensidade crescente à medida que o tempo passa – de um inimigo invisível que ataca todos e não discrimina ninguém. Começou por ser tema inevitável de conversa entre famílias e amigos, em casa, em cafés e bares. A pandemia tomou, entretanto, proporções assoberbantes, colocando o mundo em quarentena. Agora, já não nos podemos reunir em cafés nem em bares: os debates sobre o coronavírus dão-se somente nas nossas casas, onde estamos confinados.

Aos nossos lares, pelas fontes mais variadas, chegam-nos, todos os dias, números abundantes de notícias. E quando o assunto diz respeito à Covid-19, muito se fala de preocupações económicas. Dizem-nos que se avizinha uma crise sem precedentes, à escala mundial. Mas é importante não esquecer que as transformações sociais que pode gerar esta pandemia são tão ou mais importantes – até porque economia e sociedade são dois conceitos interdependentes: a evolução dum influencia a do outro.

Então, que poder terá o novo coronavírus sobre a vida em sociedade? Em que sentidos mudará esta última? Que modelo social vamos encontrar à saída deste episódio tão extraordinário?

Podemos começar por evocar a questão do distanciamento social. A expressão “distanciamento social” está nas bocas do mundo e parece revelar a mais poderosa arma contra a propagação do SARS-CoV-2, sendo uma das principais recomendações das autoridades de saúde. Mas observemos bem: na verdade, não nos é exigida distância social, mas sim física. A Organização Mundial de Saúde e outras entidades aconselham que mantenhamos um perímetro de segurança entre indivíduos de modo a minimizar o risco de contágio e trata-se, aqui, de afastamento físico. O distanciamento social não irá desaparecer enquanto tivermos à nossa disposição meios técnicos e tecnológicos que nos permitem manter as nossas relações sociais, apesar da distância física. E é de extrema relevância fazer essa distinção porque é nela que reside uma das principais alterações que o coronavírus trará ao nosso modelo social. É verdade, a facilidade de acesso que temos, hoje em dia, às novas tecnologias é, neste período, o principal suporte das relações humanas. Redes sociais, mensagens, videochamadas são a única coisa que nos permite, independentemente da distância de segurança, mantermo-nos próximos duma certa forma. Não deixámos de fazer um esforço para nos encontrarmos com os nossos amigos numa esplanada, ou para ir almoçar com a família ao domingo: esse esforço não desapareceu, transformou-se. É certo que as formas de contacto que arranjámos não substituem o toque ou o cheiro daqueles que amamos, mas temos feito o que sabemos e podemos para nos mantermos o mais fiéis possível a esse modelo. Tudo isso só revela que, mesmo após a pandemia, há coisas que não se perderão, apenas se transformarão, nomeadamente a interação com quem nos é querido. Com tudo o que está a acontecer, vamos aprender a explorar novas formas de estarmos juntos.

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Fala-se também da construção, por conta das circunstâncias, duma sociedade mais solidária que nunca. Movimentos sociais, campanhas de marketing, e até as autoridades públicas apelam ao reconhecimento do esforço daqueles que se expõem ao perigo do vírus diariamente para manter todos os outros em segurança. Aparece-nos constantemente a imagem dos “heróis sem capa”; profissionais de saúde que foram aplaudidos nas janelas de várias cidades do mundo. Lembramo-nos também de todos aqueles que asseguram o abastecimento em bens de primeira necessidade e saudamos as forças de segurança que garantem que as diretivas do confinamento são escrupulosamente cumpridas, zelando assim pela saúde pública.

O fator ambiental também entra nesta equação. Temos a esperança de que o surto de coronavírus vai devolver à espécie humana o respeito pelo meio-ambiente. O impacto da pegada humana na saúde do planeta tornou-se, na sequência do confinamento, mais transparente que nunca. O momento em que as ruas se despiram de pessoas coincidiu com a chegada da primavera, dando origem a um verdadeiro espetáculo da natureza: quem sai à rua ouve pouco mais do que o chilrear dos pássaros, vê os animais mais improváveis de volta à urbe, nota uma melhoria na qualidade do ar e na visibilidade… Uma lista de sinais que são um verdadeiro despertar de consciência do ser humano. Apesar das recomendações da OMS implicarem, por motivos de força maior, o uso massivo de equipamentos descartáveis e poluentes (máscaras, lenços de papel de uso único, material hospitalar…), pode ser que os humanos voltem, a partir de agora, a valorizar a biodiversidade e a agir de maneira mais comedida em tudo aquilo que pode ameaçar o meio-ambiente.

Muitas áreas da sociedade mudarão para melhor, disso não temos dúvidas. Mas devemos também adivinhar um modelo social mais cinzento em certos aspetos para os tempos que seguirão a epidemia.

Não é descabido imaginar, à saída desta crise sanitária, uma sociedade baseada no medo e na desconfiança. É verdade: o vírus assusta. É uma novidade, pouco se sabe ainda acerca dele, as investigações e os estudos ainda são recentes, ainda resta uma grande parte de mistério e de desconhecimento à volta do novo coronavírus. É normal termos receio daquilo que conhecemos com pouco detalhe e que nos traz incerteza. Atualmente, temos medo de ser infetados e, por conseguinte, de infetar aqueles que convivem connosco. Preocupa-nos a hipótese de termos sidos tocados pela doença e não o sabermos, porque não se exclui a hipótese de sermos assintomáticos. Esse estado de inquietação é palpável no dia-a-dia: quando, por motivos que o justifiquem, temos que sair à rua e cruzar-nos com outros indivíduos, emerge esse medo, sentimo-nos em perigo. E pior, sentimos desconfiança. Nota-se, nos supermercados, por exemplo, o olhar desconfiado das pessoas quando alguém lhes passa ao lado, ou quando se dirigem à caixa para pagar. No contexto atual, o outro, qualquer outro, representa um perigo. Por mais que as medidas do estado de emergência vão sendo progressivamente levantadas, é fácil de imaginar que os Portugueses se sintam inseguros na presença uns dos outros, mesmo respeitando a distância de segurança.

Não nos escapa, também, algum asco. Esse medo e essa desconfiança alimentam uma sensação de repulsa ao entrar em contacto objetos que nos são estranhos. Tudo aquilo que foge ao ambiente controlado dos nossos lares parece-nos sujo. Sejam os corrimões das escadas, as embalagens dos produtos que compramos nas lojas, ou as teclas dos terminais Multibanco, é incalculável o número de superfícies que provocam um certo “nojo” nas pessoas. Não é assim tão raro, ao tocarmos nesses produtos, que nos perguntemos “Quantas mãos sujas, e possivelmente contaminadas, já terão passado por aqui?”. Dá até, às vezes, a sensação de que o ar fora de casa é irrespirável e, também ele, perigoso. Afinal de contas, estamos a partilhar o ar com pessoas que podem estar doentes. Há pouco mais de um mês, estes pensamentos parecer-nos-iam absurdos; hoje em dia, reconhecemos o seu carácter inusitado, mas não os ignoramos.

Por fim, se mencionámos, no início um inimigo invisível que ataca todos sem discriminação, a ideia de um vírus democrático carece, no entanto, de alguns ajustes. Não será, com certeza, a primeira vez que se diz que esta pandemia veio sublinhar, enaltecer as desigualdades sociais e económicas. É sabido que os períodos de crise agravam as disparidades económicas, e as políticas empregadas na reação à Covid-19 desempenham um papel de enorme relevância na gestão desse desequilíbrio – muitas delas visam salvaguardar os interesses económicos, sobrepondo-os à saúde dos cidadãos e, como consequência, colocando em risco os mais vulneráveis. A isso juntam-se as consequências diretas do confinamento: queda do emprego, abrandamento das atividades económicas e tantos outros fatores que deixam milhões de pessoas em situações instáveis e precárias. Enquanto alguns agentes económicos conseguem lucrar com esta crise, outros são levados à falência. Mas não será de alguma forma necessário que alguém tire proveito do fenómeno coronavírus para manter, pelo menos, uma parte da economia ativa?

Em suma, é provável que a vida em sociedade como a conhecemos até agora sofra alterações, para melhor como para pior, por conta do coronavírus: da forma como nos relacionamos a novos métodos de trabalho, sem esquecer a responsabilidade ambiental e também uma acentuação das desigualdades socioeconómicas. No entanto, não devemos ignorar que as circunstâncias em que vivemos são excecionais e, como tal, as medidas e os comportamentos que temos adotado são excecionais. A união como a temos observado ultimamente, ou ainda a repulsa face a tudo o que vem de fora não nos são habituais; e o ser humano, no contexto social, não consegue sofrer uma transformação tão radical, de forma definitiva, em tão pouco tempo. Resta-nos então saber se, quando tudo passar, esse novo modelo social permanecerá ou se, pelo contrário, voltaremos os nossos velhos hábitos de pré-pandemia. Só o tempo o dirá.