O cerco vai-se apertando: ao apresentar o programa eleitoral do PS, António Costa fez avisos directos à Procuradora-geral da República; do ensino à saúde faz-se tábua rasa dos resultados e afastam-se os privados; todos os dias o BE anuncia mais um querer – só neste mês de Julho o Bloco já disse querer englobar rendimentos prediais e de capitais no IRS; fim das propinas durante a próxima legislatura: a adopção de medidas para proteger repúblicas de estudantes de Coimbra; o financiamento independente para a rede de Teatros e Cineteatros; ver aprovada norma do regime das barrigas de aluguer que permite à gestante arrepender-se até ao registo da criança; um Serviço Nacional de Justiça e Lei de Bases da Justiça; salário mínimo de 650€ em 2020; legislar sobre o outsourcing e a “uberização” das relações laborais, a suspensão da linha circular do Metro de Lisboa; contratos de trabalho para cuidadores formais e trabalhadores domésticos; 100 mil casas com rendas acessíveis através de programa público até 2023; a criação de Ministério para a Alteração Climática; alargar dispensa de três horas para levar filhos à escola ao privado… Já o PCP consciente da insaciabilidade da máquina estatal propõe cobrar um imposto de 0,5% aos depósitos bancários acima de 100 mil euros e o englobamento de todos os rendimentos em sede de IRS, algo que permitiria “uma subida significativa da receita fiscal, na ordem dos 8,7 mil milhões de euros, aproximadamente 4,2% do PIB”. Para a semana há mais, invariavelmente com o BE e o PCP a multiplicarem as exigências e o PS a desempenhar o papel do desempatante equilibrado.
Aquilo que estamos a viver desde que António Costa se tornou primeiro-ministro não é um programa de governo mas sim um projecto de poder: o projecto das esquerdas não só para que Portugal seja governado à esquerda mas sobretudo para que não possa ser governado doutra forma. Como é que aqui chegámos? E sobretudo porquê?
Recuemos a 2015. A cada semana que passa há uma imagem que se me torna cada vez mais viva: Catarina Martins, em Novembro desse ano, furiosa por Cavaco Silva não dar de imediato posse ao governo de António Costa. Quatro anos depois quase esboço um sorriso quando recordo que tomei então aquele frenesi por um misto de ansiedade e falta de educação.
Em 2019, é óbvio que Catarina Martins exteriorizava com mais veemência aquilo que vários dos protagonistas à esquerda tinham então percebido: havia que fazer tudo por tudo para que não fossem convocadas novas eleições. Porquê? Porque nem António Costa queria enfrentar uma campanha eleitoral em que tivesse de explicar aos portugueses que estava disposto a governar com o apoio da extrema-esquerda nem esta estava preparada para verbalizar aos seus eleitores que ia apoiar António Costa.
Os dias em que não se sabia se o então PR ia empossar António Costa ou convocar novas eleições foram marcados pelo subir do tom em relação a Cavaco Silva, um tom de que à esquerda vale a pena recordar o aviso de Catarina Martins: “O Presidente da República ficaria completamente isolado no país e teria uma contestação gigantesca se não der posse a António Costa”. Já à direita tinham-se duas certezas e ambas aconselhavam a baixar os braços: a opção por novas eleições ia sujeitar a um tremendo desgaste o CDS e sobretudo o PSD, pois seria desse partido que viria a personalidade para desempenhar o cargo de primeiro-ministro do governo de gestão, e o governo de António Costa não ia durar porque o PCP e o BE iriam inviabilizar os acordos indispensáveis ao cumprimento das nossas obrigações internacionais.
Como é óbvio a direita não percebeu o que estava a acontecer: o PS, BE e PCP não chegaram em 2015 com um programa para governar mas sim com um projecto de poder. E era esse o momento certo e provavelmente único para o porem em prática. E puseram. Portugal é hoje um país em que a esquerda manda, logo é um país menos livre, mais guetizado socialmente e em que a riqueza se traduz por não precisar de ir aos hospitais públicos, não ter de submeter os filhos à lavagem cerebral ministrada nas escolas públicas e não depender das aprovações de uma administração pública em que os técnicos são desautorizados pelos comissários políticos. O Estado cresce e pede cada vez mais recursos e ainda mais poder.
E se em 2015, Cavaco Silva não tivesse dado posse a António Costa, como estaríamos hoje? Muito provavelmente a ser governados à direita pois a possibilidade de ver Portugal governado por uma frente de esquerda era, em 2015, ainda um argumento que podia decidir umas eleições. Mas na verdade a pergunta não faz sentido. Porque Cavaco Silva teria de dar posse a António Costa. Porquê? Em primeiro lugar porque como Catarina Martins muito bem avisou: “O Presidente da República ficaria completamente isolado no país e teria uma contestação gigantesca se não der posse a António Costa.” Em segundo porque como o próprio Cavaco Silva escreveu nas suas memórias esse governo enfrentaria a agitação na rua liderada pelo PCP e pela Intersindical e em terceiro porque António Costa lidera um partido de esquerda. E em matéria de exercício do poder ser de esquerda ou direita não é a mesma coisa.
Afinal a direita que em 2015 entregou o poder às esquerdas de mão beijada com medo do desgaste e das ruas cheias de manifestações é a mesma que assistiu com alívio ao despedimento de Santana Lopes por Jorge Sampaio no ano de 2004 (até hoje a única explicação para este golpe palaciano foi dada pelo próprio Jorge Sampaio: “Fartei-me do Santana como primeiro-ministro”). Ou seja um sector político que não só não assume a defesa das convicções dos seus eleitores como os condena a uma legitimidade de segunda.
Sócrates sabemos como saiu do poder: teve de vir a troika. E Costa? O único que podemos ter como certo é que tudo será feito para que quem nos governa não seja de novo confrontado com a presença e as perguntas dos credores ou outros agentes externos. Internamente as forças da anunciada “contestação gigantesca” que iam desgastar, isolar e cercar quem tivesse obrigado Costa a disputar eleições em 2016, tornaram-se nos contrafortes do seu governo: não há contestação. Oficialmente vamos de conquista em conquista: os centros de saúde não têm sequer meios para funcionar regularmente mas anuncia-se que até vão trabalhar ao sábado. Não conseguimos renovar o cartão de cidadão mas dizem-nos que a culpa é nossa que vamos muito cedo para as filas. O Estado gasta milhões para demolir um prédio que licenciou, sendo que agora não se diz demolir mas sim desconstruir, e nem uma ajuntamento de indignados se consegue reunir…
O roteiro clássico dos processos de conquista do poder – coisa substancialmente diferente de governar – está a ser cumprido paulatinamente. Todos os dias somos inundados com informações sobre enormes problemas mas se repararmos nenhum desses problemas decorre da acção governativa: já não há esfomeados, como no governo anterior, mas sim vítimas de violência doméstica (e só doméstica) ou do racismo. Há um sempre um inimigo público, pois o ódio tem de estar sempre vivo, e um apocalipse a combater – agora são são as alterações climáticas esse fenómeno que serve para legitimar um excepcionalismo legal que tanto retira em Loulé os direitos adquiridos a um construtor que tinha autorização para construir 134 fogos como acalenta, na bacia do Tejo, o projecto de construir a Cidade da Água nos antigos terrenos da Lisnave . Subestimam-se os problemas reais — como a sustentabilidade da Segurança Social — e criam-se estados de emergência para situações que o mercado resolveria: caso da habitação. O absurdo instala-se: surgem ondas de indignação porque um talho exibe a imagem de uma mulher mas se essa mesma mulher for agredida num assalto ninguém denuncia essa violência pois de imediato se é apresentado como populista (isto na versão light dessas ondas de insultos). Quando os resultados não são bons, por exemplo no ensino, eliminam-se os exames e baixa-se o grau de exigência. O essencial não interessa mas o acessório agiganta-se: por exemplo, não se discutem os programas escolares mas sim se as escolas respeitam as questões de género, seja isso o que for.
Mais importante ainda, a oposição não existe enquanto alternativa mas sim como figura que, através da sua simples existência, prova a tolerância de quem governa. Ir além disso é obviamente considerado populismo.
Voltemos a perguntar não já o que teria acontecido se em 2015, Cavaco Silva não tivesse dado posse a António Costa mas sim como é possível estarmos neste momento a discutir uma maioria de esquerda no parlamento suficiente para alterar a constituição? Porque para exercer o poder não basta ganhar eleições há também que não ter medo do poder.
PS. Ainda a propósito de perguntas: a conservadora Ursula Von der Leyen enquanto candidata à presidência da Comissão Europeia comprometeu-se a tornar a Europa o primeiro continente a alcançar a meta da neutralidade carbónica em 2050; completar a União de Capitais, a recorrer à flexibilidade do Pacto de Estabilidade e Crescimento e a taxar os gigantes tecnológicos a operar na União Europeia, três das bandeiras defendidas pelos socialistas. Mais ainda e acabou a assegurar que a sua Comissão Europeia será paritária: “Se os Estados-membros não propuserem mulheres, não hesitarei em pedir outro nome”, asseverou, antes de anunciar a intenção de incluir a violência contra mulheres nos crimes previstos nos tratados europeus. Portanto a senhora é conservadora mas resolveu adoptar um programa socialista na presidência da Comissão Europeia. O socialismo está transformado em doutrina obrigatória?