As eleições presidenciais inspiraram muita gente para falar de outras coisas que não dos nossos 300 mortos diários que, fosse no Brasil, deveriam envergonhar Bolsonaro. Infelizmente, porém, a inspiração não deu para mais senão para discutir a “reconfiguração da direita”, isto é, André Ventura. Não nego que seja interessante, sobretudo agora, que o CDS parece tentado a consumir-se em mais uma fogueira de vaidades. Mas essa reconfiguração da direita só faz sentido se for comparada com outra reconfiguração: a da esquerda. Porque sem a reconfiguração da esquerda, não se percebe a da direita.
Há vinte anos que a esquerda não ganha uma eleição presidencial, nem propõe candidatos competitivos. No passado domingo, desceu a um patamar mais baixo. Entre as eleições de 2016 e as de 2021, os seus candidatos passaram de 1 910 443 votos (41,2% do total e 79,2% da votação do candidato eleito) para 886 549 votos (21,3% do total e 34,9% do candidato eleito). Houve a abstenção, claro. Mas a abstenção não impediu o Presidente da República de aumentar os seus votos de 2,4 milhões para 2,5 milhões, nem obstou a que os candidatos do Chega e da Iniciativa Liberal juntassem, na sua estreia, o equivalente de 71% dos votos dos candidatos de esquerda. Não vale a pena dizer que as esquerdas não tiveram este ano sorte com os candidatos, ou que o seu eleitorado se conformou com o actual Presidente. Isso também é um sinal da saúde de uma área política.
O que as presidenciais dizem é outra coisa: que o país não é de esquerda, e que a persistente governação socialista não corresponde a uma qualquer popularidade das doutrinas do socialismo, mas a uma estrutura de poder. Só a estratégia do PS, de clientelização de grupos dependentes do Estado, associada à crescente abstenção, permite à esquerda manter-se no governo. O Estado é de esquerda, mas o país não é. Ora, isso está a provocar também uma reconfiguração da esquerda.
Durante anos, foi costume em Portugal tratar a esquerda como a voz do descontentamento. O PCP e o BE eram até habitualmente descritos como “partidos anti-sistema” – sem, aliás, o pavor que a designação suscita agora quando aplicada ao Chega. As crises só podiam, portanto, favorecer eleitoralmente a esquerda. Mas em 2015, depois de quatro anos de um ajustamento terrível, nada se passou assim: o PS não ganhou as eleições, e o BE e o PCP perderam eleitores. Não houve em Portugal nenhum rompante de radicalismo popular, como o do Syriza na Grécia, ou do Podemos em Espanha. Restou por isso às esquerdas aglomerarem-se no parlamento para se refugiarem no Estado, contra um país que, zangado com a direita (a quem tirara 700 mil votos), nem por isso se entusiasmara com a esquerda. Acontece que a geringonça não reanimou demasiado os seus sócios. Nestas eleições presidenciais, o candidato do PCP teve menos 2000 votos em relação a 2016 (e menos 120 544 em relação a 2011); e a candidata do BE, que era a mesma, menos 304 mil votos (perdeu 65% da votação).
O amparo do PCP e do BE aos governos minoritários do PS deixou um terreno vago na política portuguesa. Durante quarenta anos, comunistas e neo-comunistas tinham sido os populistas de serviço em Portugal. É verdade: não falavam de ciganos nem de imigrantes. Mas eram eles quem renegava a globalização e a integração europeia, e quem exigia a restauração da soberania monetária e mesmo, no caso do PCP, a xenofobia alfandegária da “substituição de importações”. Eram também eles quem, quando havia escândalos, agarravam primeiro o microfone para insultar o “sistema” e a sua “corrupção”. Tudo isto era, ocasionalmente, motivo de gratidão comovida pelos sábios do regime. Segundo a sapiência em vigor, BE e sobretudo PCP teriam o mérito de não deixar solo livre para uma Frente Nacional lançar raízes em Portugal. Mas eis que, transformados em colunas do templo socialista, comunistas e neo-comunistas já poucos ares dão de “anti-sistema”: já não clamam pela saída do Euro, já deixam passar o dinheiro para os bancos, e nenhum escândalo da governação socialista lhes consegue abrir a boca. E, de facto, a ocupação dos feudos eleitorais comunistas pelo Chega quase nos obriga a concluir que, por uma vez, os videntes do regime talvez não estivessem errados, quando outrora viam no populismo comunista a muralha da China contra outros populismos.
Isso não quer dizer, porém, que o radicalismo comunista e neo-comunista se tenha extinguido. Muita gente se riu com a declaração de Marisa Matias de que é “social democrata”. É uma confissão de derrota histórica, na medida em que PCP e BE representam movimentos fundados para ultrapassar a “social democracia”. Mas o riso deve parar aí. Se Marisa diz que é “social democrata”, é também porque julga que pode usar a “social democracia” como uma nova camada de tinta para o radicalismo. Mais: é ainda porque pensa que poderá usar o Estado, que esses “sociais democratas” agora dominam, para instrumento desse radicalismo. De certo modo, há aqui um regresso às origens. Até à Revolução Soviética, os radicais que depois viriam a fundar os “partidos comunistas” faziam parte dos movimentos sociais democratas. Em alguns países, isso continuou, como na Inglaterra. Os trotskistas, aliás, nunca renunciaram ao “entrismo” nos partidos sociais democratas. Em Portugal, o PREC de 1975 gerou uma certa repulsa mútua entre o PS e o conjunto de comunistas e neo-comunistas. Mas não é agora improvável que o PS venha a parecer, aos radicais, uma frente útil de luta política. Não, não estou a prever a fusão das organizações do BE e do PCP no PS, mas a preferência da intelectualidade radical, que até agora alimentou o comunismo e o neo-comunismo, por carreiras num PS finalmente digno de albergar a esquerda.
Para essa “ala radical”, não faltarão os devidos líderes no PS, como agora, aparentemente, é Pedro Nuno Santos. Que poderá significar um PS mais radical? Talvez não promova rupturas com a UE, por falta de dinheiro, nem ocupações de terras no Alentejo, que já não estão na moda. Mas pode, por exemplo, agravar a hostilidade do Estado à iniciativa privada na saúde e na educação, em que, de resto, este governo socialista tem insistido, indiferente à catástrofe sanitária. A proibição de aulas no ensino privado (entretanto incrivelmente negada pelo primeiro-ministro), ou a discriminação na vacinação do pessoal dos hospitais privados mostram os abismos de facciosismo e mesquinhez a que pode descer este radicalismo de alma pequena que já manifestamente contamina o actual governo. E, claro, convirá não esperar deste PS senão uma cada vez maior relutância de admitir outras receitas que não as do estatismo que tem empobrecido o país. Neste caso, por ideologia, mas também por conveniência: é no Estado que estão anichados. Visto desse nicho, aliás, o país provoca-lhes cada vez mais nojo. Houve quem não hesitasse em renegar o Alentejo, a antiga terra da Reforma Agrária, impondo aos seus habitantes a necessidade absurda de explicar que não são “fascistas” nem “racistas“.
É tendo presente esta reconfiguração das esquerdas que devemos avaliar o que se passa à direita. Na TVI, no domingo passado, Paulo Portas lembrou que, enquanto líder do CDS, se preocupara muito em não deixar que nada crescesse à sua direita. Foi pena, porém, não ter explicado como operava esse milagre. Há vinte e tantos anos, era Portas quem rugia contra a UE, quem exigia mais segurança, e quem, para grande indignação da esquerda, se referia à imigração e aos beneficiários de rendimentos mínimos. Nessa época, Diogo Pacheco de Amorim, número dois do Chega, era um quadro do CDS. A opinião nacionalista tinha então um lugar nos partidos da direita parlamentar. Os custos de lhe dar guarida eram no entanto sérios. Mesmo à frente de um partido do regime, Paulo Portas foi frequentemente tratado como André Ventura é agora. Naturalmente, a passagem do CDS pelos governos, desde 2002, fez Portas ir negligenciando esse esforço de agregação. Também isso, juntamente com a retracção do BE e do PCP, deu terreno a outras iniciativas. À direita, porém, o movimento de reconfiguração é muito diferente do que se passa à esquerda. À esquerda, a tendência é para o radicalismo se integrar no PS; à direita, a tendência é para o nacionalismo se autonomizar e separar, formando um partido que se distingue da direita tradicional, até pela sua geografia eleitoral (PSD e CDS são partidos fundamentalmente do norte; o Chega é um partido fundamentalmente do sul).
A reconfiguração partidária é assim geral, mas com sentidos opostos. À medida que o populismo nacionalista sai do PSD e do CDS, o populismo radical entra no PS. Poderemos ter assim um PSD e um CDS mais “centristas”, como é costume dizer, e um PS mais “extremista”. Trata-se de decidir, portanto, o que é mais preocupante para a democracia portuguesa: um PSD e um CDS moderados formarem um governo reformista dependente de um acordo parlamentar com o Chega, como nos Açores; ou um PS radicalizado fazer do Estado o instrumento de uma crescente ameaça à liberdade dos cidadãos e à autonomia da sociedade civil em Portugal.