Marcelo decidiu bem. Não sou epidemiologista e, portanto, não vou lançar projecções que, em poucos dias, ficarão obsoletas. Mas creio que se pode afirmar com elevado grau de certeza que a situação presente se arrastará durante um período muito mais longo e duro do que todos desejaríamos. E percebo o suficiente de regimes e sistemas políticos para, nesse quadro, não facilitar na necessidade de a actuação do governo estar enquadrada pela lei. É verdade que, na prática, as populações já tinham voluntariamente adoptado as recomendações de isolamento social, esvaziando os principais benefícios de um Estado de Emergência. Mas é igualmente verdadeiro que algumas das mais recentes decisões do governo, por exemplo em Ovar, já foram tomadas num quadro de duvidosa legalidade e constitucionalidade, razão pela qual a iniciativa de decretar Estado de Emergência foi necessária: atribuiu um enquadramento legal para decisões que o governo possa ou não ter de tomar. Basicamente, Marcelo assegurou-se que, quando e se for necessário, o governo poderá conter situações limite dentro da legalidade.

Olhando para o quadro maior, e agora que há uma possibilidade real de medidas muito duras serem implementadas, tem de ser visto com grande inquietação que tanta gente ceda à emoção e à irracionalidade do medo, e adira à visão de que o combate pela nossa segurança deva ser forçosamente travado por mais e mais medidas que, inevitavelmente, conduzirão à suspensão das liberdades e da democracia. Nunca esqueçamos: não somos a China porque não queremos ser a China, como assinalou o Henrique Raposo. Repare-se que os regimes não-democráticos são, por definição, mais eficazes na tomada de decisão — obedecem à vontade de um líder, sem constrangimentos constitucionais ou éticos que limitem as opções disponíveis — mas não significa que decidam melhor, e deixam atrás de si um rasto de opressão que nunca poderemos aceitar. As várias formas de autoritarismo (da esquerda à direita) sempre tiveram adeptos entre os europeus, ansiosamente à espreita de perigos e ameaças ao nosso modo de vida para justificar o controlo total do Estado sobre as populações. Esse inimigo, que há não muito tempo eram os refugiados, apareceu agora sob forma de um vírus. Percebe-se, claro, que o apelo seja tentador perante o receio da morte dos nossos. Mas, vista com ponderação, a questão actual não é se venceremos este vírus, porque é certo que isso acontecerá eventualmente. A questão é que a custo o faremos – humano, social, político e económico.

É por isso que, no dia a seguir à vitória sobre o vírus, um dos grandes desafios será o de salvar as democracias enquanto regime de defesa das liberdades. O fascínio que as medidas draconianas estão a suscitar em todos os espectros da população revela como é fácil chegarmos a um ponto em que dispensamos as nossas próprias liberdades. Este ponto foi já bem apontado pelo Carlos Guimarães Pinto. Só que seria um erro considerar que esse desafio está hoje em suspenso, aguardando-se pelo fim da tempestade para arregaçar as mangas. Não está. A defesa da democracia faz-se agora.

Defender a democracia nestes tempos negros não consiste apenas no assinalar dos riscos de derivas autoritárias presentes ou futuras. Passa, antes de mais, por manter a democracia a funcionar, não abdicando das instituições políticas e exigindo mais aos nossos representantes. Ou seja, por manter o escrutínio construtivo ao governo, apontando falhas e apresentando soluções adequadas. Por denunciar erros do Estado e pedir a sua correcção, para salvaguardar a melhor defesa das populações. Por identificar medidas que têm de ser aplicadas e criticar a impreparação da resposta das autoridades públicas quando assim se justificar. No fundo, por manter a representação política viva e em funcionamento. O que implica, desde já, rejeitar a ideia de unanimismo que vigora actualmente, em que o governo ascendeu acima do bem e do mal, com apoio garantido dos partidos e do país.

Não haja confusões. Sim, o país está unido, com governo e oposição do mesmo lado. Não, não há espaço possível para intrigas partidárias ou para aproveitamentos políticos. Mas o apoio institucional ao governo num período de emergência não pode corresponder a um silenciamento político ou à aceitação tácita de todas as suas decisões, sobretudo quando estão erradas ou são insuficientes. É essa a riqueza das democracias: visões plurais e participadas em busca das melhores soluções. Mesmo sob emergência, abdicar desse pluralismo seria dar razão a quem anseia pelos autoritarismos à espreita. Não o façamos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR