No dia 23 de Setembro do ano de 1822, os cento e quarenta e um deputados das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes, reunidos no Convento de Nossa Senhora das Necessidades, aprovaram a primeira constituição política portuguesa, que denominamos pelo ano que a fez nascer. Este foi um momento de extraordinária importância para Portugal.
O documento fora pensado e feito ao longo de vinte meses, por um relativamente reduzido grupo de juristas e homens de comércio, a burguesia ilustrada das nossas cidades, mas não esteve em vigor nem sequer metade do longo período que levou a sua gestação. Na verdade, nove meses depois de aprovada seria revogada por D. João VI, o mesmo rei que meses antes a jurara perante o Soberano Congresso com estas singelas palavras: “Sendo pois o novo pacto social a expressão da vontade geral, e o produto das vossas sabias meditações, acomodado à ilustração do século, e cimentado sobre a reciprocidade de interesses, e sentimentos, que tornam a minha causa inseparável da causa da Nação, eu venho hoje ao seio da Representação nacional aceitar a Constituição, que acabais de fazer, e firmar com o mais solene juramento a inviolável promessa de a guardar, e fazer guardar”.
A violenta reação de largos setores da sociedade portuguesa contra a sua primeira constituição política não foi caso único na Europa desse tempo. Pelo contrário, as essas novas leis não eram bem acolhidas pelas casas reinantes da época, nem pelas estruturas dirigentes dos estados, e provocaram reações iniciais muito semelhantes em todos os países europeus por onde foram surgindo. As constituições eram sinónimo de liberalismo e de poder limitado dos reis, de government under the law, e isto fazia reavivar inegáveis reminiscências da Revolução Francesa e da cabeça cortada do malogrado Luís XVI.
Com o fim definitivo do bonapartismo (1815), regime cujo titular, nobilitado como imperador, nunca deixou de ser visto pelos seus pares como um sans-culotte arrivista e desagradável, o Congresso de Viena e a Santa Aliança tentaram recompor a velha ordem monárquica europeia, movendo-se contra ao liberalismo e a constituição. Depois de um breve hiato em que na Europa quase não se registaram veleidades liberais, esmagados os revoltosos de Cádis em 1814, em Espanha, até ao ciclo revolucionário principiado em 1820, as casas reais europeias gozaram de relativa paz. Nesse ano, e nos três mais que se lhe seguiram, o chamado «triénio liberal», em Espanha, Portugal, Nápoles, no Piemonte e na Sicílias eclodiram insurreições, revoltas e revoluções em nome do liberalismo.
Foi assim que, a 24 de Agosto de 1820, um pronunciamento militar ocorrido na cidade do Porto se acabaria por transformar, nas semanas imediatamente seguintes, numa verdadeira revolução nacional, liberal e constitucionalista. O 24 de Agosto foi, inicialmente, um insólito pronunciamento militar que circunstancialmente juntou monárquicos conservadores (Sebastião Drago Valente) e absolutistas (António da Silveira Pinto da Fonseca) e liberais constitucionalistas (os homens do Sinédrio), num propósito comum: destituir William Carr Beresford, o oficial inglês que chefiava o nosso exército e, na prática, o país, e chamar à metrópole D. João VI, ausente no Brasil desde Novembro de 1807. Sucede que a esta intenção corporativa, que fez mover a esmagadora maioria dos militares que se envolveram no golpe e que pretendiam recuperar os postos de chefia de que os oficiais ingleses se haviam apropriado, se juntavam os homens do Sinédrio (Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Carvalho, José Ferreira Borges e mais dez conspiradores), que pretendiam transformar o país num verdadeiro Estado liberal, conforme as «luzes» da época. Sublinhe-se, a título de curiosidade histórica, que aqueles ignoravam a existência organizada do Sinédrio, do que só se aperceberiam após o sucesso inicial do golpe, e praticamente desconheciam as suas verdadeiras intenções liberais e constitucionalistas. Nesse momento, quando tomaram consciência de que nada de substancial os aproximava, transitaram, quase todos sem exceção, para o campo do legitimismo régio joanino e mesmo até, boa parte deles, para o extremo oposto do absolutismo miguelista.
Depois de inúmeras peripécias e dificuldades, que incluíram uma tentativa de putsch desse sector conservador contra os liberais do Sinédrio, ainda em Novembro de 1820 (a Martinhada), que definitivamente consumou a separação dos dois grupos, a fação liberal acabou por sair triunfante, passando a governar os destinos da revolução e do país. Graças a isso, realizaram-se eleições para uma assembleia constituinte (Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes, vulgarmente identificadas como «Soberano Congresso»), entre os dias 10 e 30 de Dezembro desse mesmo ano. Os seus trabalhos principiaram a 24 de Janeiro de 1821 e estenderam-se até 4 de Novembro de 1822. A Constituição de 1822, aprovada a 23 de Setembro desse ano e logo revogada a 3 de Junho do seguinte, resultou dos trabalhos dessa assembleia constituinte representativa.
O texto constitucional, embora extraordinário para a época, era, contudo, demasiado arrojado para um pequeno e atrasado país, como Portugal. Atrasado no parco desenvolvimento económico, industrial e social, mas principalmente muito atrasado nas mentalidades de algumas elites, que sonhavam ainda com a recomposição de uma ordem antiga, que já não cabia no novo mundo que se anunciava e para o qual não se prepararam nem prepararam o país. As reações não se fizeram esperar, vindas de sectores ultramontanos e, porque não dizê-lo, muitos deles verdadeiramente absolutistas, que integravam o designado «partido apostólico» da rainha Carlota Joaquina, do seu filho Miguel e dos Silveiras de Chaves e de Amarante. Que razões motivaram semelhante descontentamento, que a Igreja Católica não deixou de acompanhar? A identificação da Constituição com o ideário liberal e deste com a limitação do poder soberano dos príncipes.
Não se enganavam, os contestatários. De facto, a Constituição liberal portuguesa de 1822 foi seguramente, até hoje, a única verdadeiramente digna dessa qualificação. Com ela, e com a doutrina política que a sustentou e que perdurou no tempo, o vintismo, Portugal começou a perceber que poderia ser um Estado de direito e que não tinha de permanecer no Ancien Régime. Que o governo, na época corporizado pelo rei, podia ser submetido à lei emanada pelos representantes da Nação e limitado pelos princípios da liberdade, da propriedade e da segurança. Que o estado devia garantir os direitos fundamentais do indivíduo. Esse foi o sentido seguido pelo texto da nossa primeira Lei Fundamental, que assim dava guarida aos dois requisitos que o artigo 16º da Declaração de Direitos francesa de 1789 impunha para a existência da constituição liberal: separar os poderes de soberania e garantir os direitos do indivíduo.
Primeiro, a Constituição corporizou a ideia contratualista de olhar para a ordem política, não como um dado da natureza ou uma determinação divina, mas como um pacto social, acordado entre todos os cidadãos, que definia, pela via representativa, o regime em que queriam viver. A escolha da nossa primeira Lei Fundamental foi a monarquia constitucional, quase-democrática, pelo menos tão democrática quanto o permitia, na altura, a própria doutrina da democracia. É certo que o sufrágio não era ainda universal (verdadeiramente, só a partir do começo do século XX o começará a ser e, na maior parte dos países do mundo, só mesmo após o fim da 2ª Guerra Mundial o será), mas não era censitário, ao contrário de grande parte das suas congéneres da época, permitindo o voto a quem não tivesse renda ou meios de fortuna vultuosos.
Resultado de um pactum societatis conducente ao pactum subjectionis, o Estado passará a ter por finalidade primária a garantia dos direitos individuais dos agora «cidadãos». Estes serão os indivíduos a ele ligados por um vínculo jurídico-político, com o qual passam a ser sujeitos de direitos e deveres, que serão iguais para todos. A Constituição de 1822 revela-se, nesta matéria, fiel ao ideário liberal, proclamando a defesa dos direitos fundamentais de primeira geração, ou lockeanos, a saber, a vida, a segurança, a propriedade, a igualdade face à lei, numa palavra, a liberdade. Isto mesmo é dito logo no primeiro artigo do texto («A Constituição Política da Nação tem como objeto manter a liberdade, segurança e propriedade de todos os Portugueses»), sendo que os dezoito que se lhe seguem, dezanove artigos no conjunto dos duzentos e quarenta que a compõem, dedicam-se a tipificar e a caracterizar esses direitos. Para além dos que são habituais no liberalismo iluminista, é de realçar a consagração da absoluta liberdade de expressão «sem dependência de censura prévia» (artigo 7º), o que, para a época, era de um extremo arrojo.
Em seguida, a Constituição fez migrar a legitimidade da soberania do «direito divino dos reis», em que insistiam os nossos «tradicionalistas» estranhamente coligados com os defensores do despotismo pombalino, como Pascoal José de Mello Freire dos Reis, para a Nação. Aqui, foi onde talvez se tenha ido mais longe, porque, se não excluiu o rei da esfera da soberania, a lei deixou bem claro que ele era um mero delegado da Nação, que para isso o habilitara, não tendo qualquer direito próprio a ela. Diz o artigo 26º: «A soberania reside essencialmente em a Nação. Não pode, porém, ser exercitada senão pelos seus representantes legalmente eleitos. Nenhum indivíduo ou corporação exerce autoridade pública que se não derive da mesma Nação». Dito doutro modo, o ius sanguinis já não é o fundamento do imperium, mas sim o sufrágio e a representação. Esta é, ainda nos nossos dias, a base da doutrina democrática.
Na mesma orientação liberal, a Constituição consagrou uma separação tripartida da soberania (legislativo, executivo e judicial) e uma relação, quase res publicana, entre os poderes que a compunham. Daqui resultou, na teoria e na prática, que o rei, enquanto chefe do executivo, ficava completamente afastado do poder legislativo, que pertencia às Cortes representativas, o mesmo é dizer, à «Nação», a quem, e somente a quem, cabia por essa via enunciar a «vontade geral». Nesse sentido, o parlamento instituído era necessariamente unicameral, desprovido, portanto, de uma câmara alta aristocrática, constituída por Pares do Reino de nomeação régia. As leis não teriam, por conseguinte, qualquer ingerência do monarca na sua composição, sendo que este estava obrigado a acatá-las.
Tão pouco na promulgação da lei, que cabia ao rei sancionar e onde de novo poderia ser tentado a limitar a soberania legislativa da representação nacional, ele se poderia sobrepor ao parlamento. Consagrava o artigo 110º que, se o rei discordasse de uma lei aprovada nas Cortes e lhe recusasse a sanção, condição necessária para a sua promulgação, esta não seria mais do que suspensiva e provavelmente de duração muito breve, já que as Cortes poderiam novamente sujeitá-la a votação e, se de novo a aprovassem, o rei estaria obrigado a conceder-lhe imediatamente a sanção real. Repare-se que há nisto um arrojo que põe a nossa Constituição de 1822 muito à frente das que a inspiraram, nomeadamente a Constituição francesa de 1791 e, sobretudo, a espanhola de Cádis de 1812. De facto, nesta última, tinha-se o veto régio como suspensivo, mas uma lei vetada pelo rei só poderia voltar às Cortes no ano seguinte, sendo que o rei poderia, depois disso, de novo negar-lhe a sanção, repetindo-se o procedimento. Ou seja, um diploma vetado pelo rei poderia demorar três anos para que as Cortes lho impusessem à sanção. Durante tão longo período temporal, seria natural que a lei acabasse por cair ou por acolher as críticas do rei, pervertendo a soberania legislativa nacional. Na Constituição portuguesa, porém, as Cortes podem apreciar novamente o projeto rejeitado pelo rei imediatamente a seguir ao veto real, se assim o entendessem e, ato imediato após nova aprovação parlamentar, o rei estava obrigado a promulgá-la. Sieyès considerava que o veto legislativo régio era uma indesejável “ordem de prisão lançada sobre a vontade nacional”. A nossa primeira constituição acolheu, na melhor lógica liberal clássica, essa convicção.
Como já assinalámos, foi de pouca duração a vigência do nosso primeiro texto constitucional. E, apesar dele ter sido reposto em vigor na sequência da revolução setembrista de 9 de Setembro de 1836, gesto que pouco mais foi do que simbólico, a Constituição de 1822 perdurou, na ordem jurídica nacional, por escassos nove meses. Não houve, na altura, a capacidade para entender que, se quisesse salvar-se, a monarquia teria de transformar-se em res publica. Diria Trindade Coelho, alguns anos depois, sobe o texto dessa Constituição, que «era bom, mas era demais para o tempo, no nosso país». Os monárquicos ditos tradicionalistas tudo fizeram para lhe pôr fim. Seriam, mais tarde, parcialmente derrotados por uma constituição outorgada por D. Pedro IV, a Carta Constitucional de 1826, onde o princípio da soberania nacional já era, porém, pouco nítido. Salvo melhor opinião, foi por terem mantido a constituição pedrista até 1910, depois de António da Costa Cabral a ter restaurado pela segunda vez e, consequentemente, prescindido da defesa da soberania nacional, que os republicanos se apropriaram dessa bandeira e, com ela, impuseram a res publica sem rei em 1910. Não quiseram, os monárquicos desse tempo, aceitar que o rei deve reinar, mas não governar. Como é aceite, nos nossos dias e até com entusiasmo, por todas as monarquias democráticas europeias.
Hoje, muitos monárquicos portugueses que ainda se sentem miguelistas, e não serão tão poucos como se possa supor, vertem lágrimas por Isabel II, exaltando tudo o que ela foi e representou. Perceberam muito pouco do que nos últimos duzentos anos se passou.