“Que o país seja governado pelo país”, costumava dizer e escrever Alexandre Herculano, sublinhando, desse modo, as suas fortes convicções municipalistas e descentralizadoras. Herculano foi o mais distinto liberal português de sempre, e, sabendo que o liberalismo só se justifica por ser necessário conter a impetuosidade imparável do Leviathan, encontrou nos princípios antigos do autogoverno local a forma mais eficaz de o tentar conseguir. Eram convicções fundadas numa história que, por vezes, na sua descrição ideal das comunas, beetrias e municípios medievais, aproximava-se mais da novela romanceada do que do rigor da factualidade, mas, principalmente, era a ideia matriz que importava: “Que o país seja governado pelo país”, que o poder seja exercido por aqueles aos quais se destinam a decisões soberanas. Era aqui que Alexandre Herculano procurava a sua ideia de liberdade e foi aqui que a encontrou. Infelizmente, não no Portugal supostamente liberal dos seus dias, mas naqueles países que ele gostava de designar como os “países clássicos da liberdade, nos países municipalistas e não centralizadores, chamados a Inglaterra e os Estados Unidos da América”.

O municipalismo e a descentralização são valores e princípios liberais clássicos. Herculano, a alma mater do liberalismo português, foi, por amor à liberdade e antes de ter sido qualquer outra coisa, um municipalista e um descentralizador. Noutras paragens, na pátria do moderno centralismo político e administrativo que tanto nos influenciou, na eterna França dos Luíses, da Convenção e dos Bonaparte, Alexis de Tocqueville, que Herculano conhecia, lia e respeitava, defendia a tese de que a natureza essencial da França moderna, que se impôs desde o fim do século XVII, se poderia encontrar exactamente na centralização do poder. No livro O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville aventava que “a liberdade municipal francesa” tinha conseguido sobreviver ao feudalismo, mas perecera perante o absolutismo régio e os absolutismos da Convenção e de Napoleão, que mantiveram e ampliaram ao paroxismo os traços essenciais do Ancien Régime. A Revolução Francesa fora a continuação da centralização do absolutismo por outros meios, se nos é facultada a possibilidade de glosar a célebre frase de Clausewitz sobre a guerra. E é aqui que se funda a tese do autor francês de que a Revolução não alterou nada de substancial do regime que alegadamente depôs, fazendo coro com a convicção de Alexandre Herculano de que, no passado, “a centralização chama-se absolutismo”.

E o que deve entender-se por isto? Por um conjunto de conceitos próximos e afins, como “municipalismo”, “poder local”, “poder autárquico”, “descentralização” ou “subsidiariedade”? Numa abordagem soberanista ou estatizante, isto é, que parte do princípio de que todo o poder tem origem e se legitima no Estado, dir-se-á que se tratam de concessões do soberano às populações, feitas por razões de eficácia no exercício do poder, para melhorar e tornar mais célere a governação. Outros, politicamente mais parcimoniosos, dirão que o valor democrático da “transparência” aconselha a deslocalizar o que é feito no Terreiro do Paço para os Paços do Concelho. Erro. Vejamos: o conceito-base de que aqui tratamos é o de autarcia, vocábulo de origem grega, que, numa tradução aproximada, significa “entidade que se basta a si mesma”. O poder autárquico será, nesta perspectiva, não um poder que é delegado ou transferido pelo poder central, mas o poder próprio dessa comunidade que, por razões que a História explicará, foi-se perdendo em favor da centralização. Desenganem-se, então, aqueles que acham que a “subsidiariedade”, esse palavrão exótico e de difícil verbalização, que está inscrito em todos os Tratados da União Europeia de Bruxelas, serve para criar maior eficiência política pelo facto do poder ser exercido no nível mais próximo do indivíduo (prefiro indivíduo a citoyen, confesso). Ele é o exacto contrário disso: um princípio que nos diz que o poder – todo o poder – pertence às pessoas concretas – não aos Estados, não aos governos, nem sequer aos órgãos do poder local – e que, por isso, elas têm o direito de fiscalizar, com a maior proximidade que for possível, aqueles que elegeram para os representar no uso de funções e competências que, por razões de ordem prática, não podem ser desempenhadas por todos, em simultâneo. Os valores do poder autárquico ou local são, por conseguinte, valores liberais. Seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista da filosofia e da teoria das ideias políticas. Todas as demais ideologias, por mais que batam com a mão no peito em juras de amor eterno ao poder local, sobretudo as doutrinas socialistas e intervencionistas (palavras quase sinónimas), não podem incluir-se neste grupo: eles acreditam que é no Estado soberano que reside a legitimidade do poder e que o poder local é uma benesse sua, em forma de delegação sempre reversível  de competências às populações.

Por conseguinte, quando nos aproximamos, a passos largos, do início de uma campanha autárquica com vista às eleições de 26 de Setembro, o que é expectável ouvir dos candidatos liberais, principalmente dos que se apresentam a votos pela Iniciativa Liberal, que pela primeira vez disputará eleições destas? Dizerem que vão fazer mais e melhores rotundas e estátuas, e que vão manter as calçadas mais limpas e menos esburacadas do que fazem os poderes autárquicos dos outros partidos está fora de questão. Não só por ser mais do mesmo, mas, sobretudo, porque seria desmerecer a verdadeira tradição do liberalismo. Em contrapartida, se os liberais dizem que o Estado está inchado, que tem poderes excessivos que esmagam o cidadão, então, o que os candidatos autárquicos da IL precisam de nos explicar é que poderes vão devolver aos cidadãos, dos que, obviamente, se encontram na esfera legal das competências municipais. Aí, apesar do poder local ser relativamente magro face ao do Estado central, há muito para fazer e que pode ser feito. É uma verdade insofismável que uma câmara municipal pode destruir a vida a um munícipe, afugentar investidores e empreendedores, empobrecer e tornar infeliz a comunidade que governa. PDMs intencionalmente infindáveis e de interpretação esotérica, normas incontáveis sobre edificação e construção civil, burocracias kafkianas para se conseguirem autorizações de toda a espécie, atrasos nos licenciamentos, fiscalizações velhacas e prepotentes, impostos extorsionários sobre o património imobiliário, decisões absurdas (e, por vezes, corruptas) sobre investimentos públicos, cadernos de encargos estúpidos para concursos e candidaturas manipuladas e previamente decididas, adjudicações de favor de obras, embargos, famílias inteiras com emprego nos serviços municipais. Um presidente liberal de um município português não terá mãos a medir para, na execução de um programa liberal, remover toda esta canga de poderes napoleónicos e totalitários, que o poder público foi absorvendo de forma centrípeta, e devolver aos cidadãos aquilo que verdadeiramente lhes deveria pertencer por direito próprio. É difícil? Certamente que sim. Impossível? Certamente que não. Se dúvidas houver, sigam o exemplo extraordinário da presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, que anunciou esta semana que, já em 2022, todos os impostos cobrados pelo organismo a que preside serão extintos. Reparem, não é reduzidos, nem parcialmente suspensos, nem para fazer nas calendas: vai extingui-los a todos, já, com início a 1 de Janeiro de 2022. Se a função politicamente útil do liberalismo é a de libertar o indivíduo e as sociedades das garras prepotentes do Estado e do poder público, então, não se fiquem por menos do que isto.

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