Os dias que correm são pouco propícios a análises ponderadas e com algum distanciamento crítico sobre a crise grega e as suas implicações para a União Europeia. Por um lado, porque as notícias se sucedem a um ritmo impressionante: ao longo dos últimos meses sucedem-se os dias anunciados como “absolutamente decisivos”. Por outro, porque as análises se apresentam frequentemente turvadas pelas simpatias de quem as realiza: para os simpatizantes do Syriza, tudo o que o governo grego faz está bem feito; para os defensores da “ever closer union”, tudo o que preserve o euro e aprofunde a integração europeia (a qualquer custo) é justificável; para os opositores do euro, tudo o que possa contribuir para o colapso da zona euro é desejável.
Neste contexto, não é fácil ir além da espuma dos dias, mas talvez o que está em causa justifique que se tente. Chegados a este ponto, vale a pena recordar alguns aspectos essenciais do trajecto que nos conduziu à presente situação:
1 – O Syriza ganhou as eleições com base em promessas de acabar com a “austeridade” imposta pela troika e de bater o pé aos credores. Adicionalmente, comprometeu-se a não passar uma série de “linhas vermelhas”.
2 – Após vários meses de negociações sem sucesso com as “instituições europeias” (a mudança de nome da troika foi um dos poucos triunfos do Syriza), e face a uma proposta por parte da UE que previa cerca de 8 mil milhões de “austeridade” adicional, o governo grego convoca um referendo e apela ao voto contra o acordo.
3 – Mais de 60% dos gregos que votaram no referendo rejeitam o acordo, não obstante as múltiplas declarações de responsáveis europeus sobre as consequências que daí adviriam para a Grécia.
4 – Imediatamente após o referendo – e em flagrante contradição com os resultados desse mesmo referendo, com os seus compromissos eleitorais e com a toda a sua retórica anterior – o governo grego apresenta um pedido de um terceiro resgate acompanhado da promessa de implementar medidas de “austeridade” substancialmente superiores às que haviam sido rejeitadas poucos dias antes e que violariam (se implementadas) praticamente todas as “linhas vermelhas” anteriormente proclamadas.
Pelo meio, a situação económica grega deteriorou-se ainda mais, os bancos fecharam por falta de liquidez e o Estado grego ficou na iminência de uma ruptura de pagamentos. O sinistro charlatão Varoufakis, que havia assegurado que se demitiria em caso de vitória do “Sim” e que, em caso de vitória do “Não”, haveria um acordo em 48 horas, demitiu-se. O ex-ministro, entretanto regressado ao Parlamento grego e felizmente ainda com dois braços, declara apoiar o acordo mas falta à votação porque… quer passar tempo com a filha que vive na Austrália. Como cereja no topo do bolo, o governo liderado pelo Syriza evidenciou também na prática a concepção de pluralismo da extrema-esquerda quando está no poder, ao colocar sob investigação jornalistas gregos que cometeram a ofensa de terem defendido publicamente o “Sim” no referendo.
No meio de tudo isto, a única nota de consistência parece ser um profundo desrespeito pela democracia. Como a generalidade dos portugueses terá presente, os argumentos mais fortes a favor da democracia não são o de conduzir necessariamente a boas políticas públicas nem o de possibilitar o acesso ao poder de políticos honestos ou competentes. Mas há no entanto um argumento importante a favor da democracia, defendido por autores tão distintos como Ludwig von Mises ou Karl Popper: o de possibilitar trocas de Governo reflectindo a vontade da maioria da população sem necessidade de revoluções violentas.
Para que tal aconteça, no entanto, é preciso que haja alternativas políticas reais dentro do sistema. Se a moeda única europeia, assim como a própria integração europeia, são apresentadas como processos irreversíveis, restará às populações insatisfeitas revoltarem-se contra o próprio sistema. Em parte foi essa percepção que permitiu aos extremistas do Syriza subir ao poder. E a insistência em manter a Grécia na zona euro contra todas as evidências apenas agrava o problema.
A gravidade do erro associado à obstinação com o euro foi bem explicada por João Carlos Espada:
“ (…) foi seguramente um erro gigantesco ter criado o euro sem uma cláusula de saída ordeira. E é um erro gigantesco identificar a moeda única com a União Europeia. A moeda única deve ser apenas uma opção possível para aqueles países que queiram subscrevê-la. Por isso mesmo, esses mesmos países devem poder sair ordeiramente do euro quando maiorias eleitas preferirem políticas divergentes das do euro.”
A possibilidade de saída do euro não deve ser apresentada como algo necessariamente trágico e catastrófico, mas antes como uma via legítima e até desejável para países que optem por políticas incompatíveis com a pertença à zona euro. O erro – económico e político – de não ter previsto um processo de saída ordeira da zona euro deve por isso ser corrigido o mais rapidamente possível. É verdade que há riscos significativos associados à saída da Grécia, mas não é menos verdade – como bem salienta André Abrantes Amaral – que os riscos de manter a Grécia na zona euro são enormes.
A alternativa é continuar a empurrar o problema para o futuro. O governo grego pode até fingir querer cumprir um programa de “austeridade” aceitável para os credores e os credores por sua vez podem fingir acreditar, mas nada ficará resolvido. Com a agravante de que, à medida que se vai adiando a resolução do problema grego, como bem avisa Rui Ramos, os riscos aumentam para a União Europeia como um todo.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa