Há duas tiras de quadradinhos em que a Mafalda, de Quino, introduz uma explicação para as desavenças no mundo: o facto de metade do mundo estar a almoçar quando a outra metade está a dormir. E termina ditando ao Filipe uma carta ao secretário-geral da ONU sugerindo que o que divide o mundo afinal não é a política mas o sono.

Às vezes tenho uma desconfiança prima desta quanto à esquerda e à direita: que o que as divide não é tanto os valores ou os caminhos políticos; é o dicionário. É que não se aventa outra explicação para usos tão exóticos de certas palavras.

Um exemplo: sucesso. António Costa há poucos dias afirmou, num evento sobre educação, que ‘este governo não foi capaz de conviver com nenhuma das marcas de sucesso da governação socialista’. Uau. O país inteiro vive encadeado com tanto sucesso socialista, efeito de resto agudo por estes dias quando se preenche a declaração para o IRS.

É que dos governos socialistas, assim de repente, vem-me à ideia que, depois de treze anos de governação PS entre 1995 e 2011, a recompensa do ‘sucesso’ foi um resgate financeiro internacional com todos os mimos à população que estes resgates costumam trazer. Ou as obras públicas que o PS ainda agora garante serem receita para o crescimento económico mas que entre 2000 e 2011, com militante aposta nelas, não trouxe nenhum; as pessoas que têm dicionários viciados até chamam ‘a década perdida’ a estes anos. Ou as PPP. Ou um primeiro-ministro agora preso preventivamente por suspeição sobre a sua atuação enquanto PM.

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Para o PS, tudo isto – falta de crescimento, esbanjamento de dinheiro dos contribuintes, corrupção, bancarrota – é ‘sucesso’. (Mas acabe de ler o texto, caro leitor, antes de correr para uma livraria em busca de dicionário novo.)

Outro exemplo: democracia. Para mim, inocente alma iludida, democracia é um regime político assente na separação de poderes, com eleições livres e universais, coisas bonitas como um voto por cabeça, instituições que se vigiam entre si (aquilo que os rústicos americanos, que têm muito a aprender com a esquerda nacional sobre processos democráticos, chamam checks and balances), cidadãos com possibilidade de acederem à informação relevante sobre quem nos governa e como (o bom do escrutínio democrático), governantes dando aos governados satisfação da forma como atuaram (dos mesmos rústicos vem o nome accountability). Tudo a acompanhar uns tantos direitos, liberdades e garantias.

Mas vivi estes anos todos enganada, que democracia não é nada disso. Democracia – e espero que estejam com corretor na mão para rasurar o vosso adulterado dicionário – é o regime político que permite à esquerda (e apenas a esquerda) governar com legitimidade.

Já fazem parte do folclore nacional as palavras de Bernardino Soares sobre a democracia norte-coreana. E eu tenho idade para me lembrar de ver na televisão Álvaro Cunhal garantindo que Cuba era democrática: é que havia uma ligação meia mística entre o ditador e os cubanos que fornecia ao primeiro a vontade do povo – à qual, quem duvida?, obedecia. Uma espécie de democracia por osmose.

É por estas divergências sobre a palavra democracia que por cá se fez contas aos votos em Cavaco Silva para ver se ele afinal é muito ou pouco Presidente. E se declarou, a cada manifestação dos últimos quatro anos, que o Governo já não tinha legitimidade para governar – porque as birras de sindicalistas valem mais do que os votos das pobres almas enganadas pela direita.

Também é culpa dos dicionários que depois da vitória tory da semana passada logo os proprietários dos exemplares vintage, em papel bíblia e despojados de revisionismos posteriores a 1989, caridosamente explicassem que os círculos uninominais são radioativos. Como poderia ser de outra forma, se este malévolo sistema permite maiorias absolutas à direita?

No Reino Unido o apego da esquerda aos resultados democráticos foi ainda mais arrebatador, facto que não passou despercebido até à gente de esquerda possuidora de senso comum (e, diria eu com o meu dicionário estropiado, espírito democrático). Mas, Oscar Wilde (outro que se baralhava com palavras) dixit, como o senso comum é a mais incomum das qualidades, houve protestos de rua, vandalizaram-se monumentos de veteranas da Segunda Guerra Mundial, uma académica desamigou todos os que no Facebook tinham like nos tories ou em Cameron (e contou ao mundo; depois, quem sabe, talvez tenha escrito um ensaio sobre os benefícios da presidência de Evo Morales), produziram-se incontáveis proclamações da abjeção moral de todos os que votaram tory. E mais umas coisas divertidas.

Portanto, senhores linguistas, façam favor de alterar a definição de democracia para o que eu escrevi uns parágrafos acima. Porque as pessoas à esquerda defendem o Bem e não podem senão ser as conhecedoras da verdadeira democracia. E até é fácil esta alteração linguística: basta trocarem entre si as definições de democracia e de estado autoritário.