Em pleno Campeonato do Mundo de Futebol, faz sentido discutir a União Europeia (UE) e o seu futuro? Vale a pena evocar Juncker e o debate sobre o próximo Presidente da Comissão Europeia? Claro que sim. Enquanto nos entretemos com o pontapé na bola, muito está a acontecer. E passado o presente que é circo, importa desde já debater o pão de amanhã, essencial para a nossa co-existência colectiva.

Dois pontos prévios: primeiro, o foco deste texto, que consiste na resposta à resposta dada pelo João Marques de Almeida ao meu artigo – “O que está em causa é a Europa. O nosso futuro” – e que quase se pode resumir ao título: Meu caro Paulo, percebeste o que escrevi? O segundo ponto respeita à necessidade de dar esta resposta. Não sou adepto da controvérsia pela controvérsia e muito menos me interessa alimentá-la se não servir qualquer propósito útil. Mas o que está em causa é importante; é, como escrevi, o nosso futuro: a Europa.Vamos então ao assunto.

Pergunta o João Marques de Almeida se percebi o artigo que escreveu. Sabendo tratar-se de uma pessoa inteligente e competente nestas matérias, e que aliás muito estimo, fiquei naturalmente na dúvida. Mas logo a seguir, ele responde por mim: “(…) Paulo, não entendeste nada do que escrevi”. Li e reli os dois artigos, “O que está em causa” e o mencionado “Meu caro Paulo, não percebeste o que escrevi (?)”, e espero tê-los percebido um pouco melhor.

A uma primeira questão suscitada pelos seus artigos, chamei democrática: Os partidos políticos do Parlamento Europeu (PE) violaram gravemente o Tratado ao escolher candidatos à Presidência da Comissão (1o artigo); os líderes europeus deviam ter travado a escolha no início do ano mas não se quiseram “chatear” na altura e por isso ficaram com ”um problema bicudo para resolver” (idem). Diz ainda Marques de Almeida que “os membros do Conselho Europeu gozam de uma legitimidade superior à do PE”! Li a frase várias vezes, confesso que com dificuldade em percebê-la; mas o João, mais à frente, explica: “rigorosamente, há eleições nacionais para o PE; não há verdadeiras eleições europeias” (1o artigo). Finalmente, diz ser preferível que a futura Comissão dependa do Conselho Europeu do que do PE, instituição onde há “exemplos assustadores de loucura política” (sic – do 1o artigo). No 2o artigo, João Marques de Almeida acrescenta um argumento que seria poderoso se não estivesse resolvido há muito pela doutrina jurídica: a intenção dos negociadores (do Tratado de Lisboa) seria que o Conselho Europeu escolhesse “um candidato que reunisse as condições políticas para ter a maioria no Parlamento, não foi dar essa escolha ao Parlamento”.

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Percebi e estou de acordo. Esse é o espírito do legislador. Mas qual o espírito da lei? Para benefício dos leigos em direito, direi que a lei é texto e espírito (da lei), contando ainda, se bem recordo os ensinamentos de Oliveira Ascenção, com a ordem social vigente, a que chamaria de contexto pertinente. O espírito do legislador (vontade em concreto de quem fez a lei) tem um carácter meramente ilustrativo ou de orientação geral.

Como responder à questão democrática? Resumirei usando à contrario o seu argumento final. O contexto social, a evolução política, a necessidade de dar resposta aos anseios de mais democracia, levou à necessidade de uma interpretação normativa no sentido que os partidos políticos europeus corporizaram. Aliás, a doutrina há muito identificou uma característica essencial das normas dos Tratados, o chamado princípio dos efeitos não queridos: o legislador, constituído de facto pelos Estados-membros (não pelo Conselho Europeu), adopta de forma genérica, imperfeita e lacunosa um conjunto de regras que a prática, o dia a dia, o tal contexto pertinente, se encarregam de moldar, interpretar e modificar. Quanto a dizer que o Conselho Europeu é mais democrático que o PE… essa parte, confesso, continuo a não entender.

Segunda questão, que designo de falácia da irritação: Não gostou o João de terem sido por mim associadas as suas ideias às de Le Pen e Farage. Recordo o que escrevi (é a minha vez): a posição que defende implica o fim da UE como a conhecemos. Nisso está bem acompanhado pelos deputados que entraram no PE e cujo programa consiste em… acabar com a UE. Curiosamente, em lado algum refiro Le Pen ou Farage. Mas insisto que a organização institucional proposta por João Marques de Almeida conduz a prazo ao fim da União com os valores e objectivos que levaram à sua criação. Que isso seja a mesma coisa que perseguem alguns dos novos deputados europeus e que essa afirmação tenha “irritado” o João é uma infeliz coincidência; lamento que se tenha sentido visado, quando visadas foram apenas as suas ideias e só nesta matéria. Como deve ser, aliás.

Terceira e última questão, a intergovernamentalidade. Cito na íntegra, com a devida vénia: “(…) não entendo por que razão o meu argumento é “intergovernamental”. Estou simplesmente a defender o que entendo ser o respeito pelos tratados (para usar um palavrão, o ‘método comunitário’). Além disso, também não percebo o teu problema com o “intergovernamentalismo” (que tratas como a antecâmara das ditaduras). Os tratados, desde Roma a Lisboa, resultam de negociações entre governos (intergovernamentais portanto). O teu “sonho” pelo qual tanto “lutas” tem sido o resultado da vontade de governos. Olha para a fotografia dos participantes nas negociações do Tratado de Roma e tenta descobrir os representantes do Parlamento Europeu”.

Seria matéria para muitos artigos e nenhum leitor, por paciente que seja, teria forças para tanto. Mas muitas estrelas, das mais brilhantes do céu, cuja brilho anima tantos sonhos de tantos quantos as contemplam, estão há muito mortas. Morreram na realidade há milhões de anos, mas só dará por isso quem, dentro de outros milhões de anos, der pela sua falta no firmamento. E será pena. E será tarde.

A UE é uma estrela, o sonho de que falas, João (e agradeço que o recordes); foi difícil construí- la. Destruí-la é mais fácil, talvez esteja já a acontecer. A sua evolução foi sempre no sentido de dar resposta às necessidades de uma integração de economias, sociedades e povos livres e soberanos, cientes da absoluta urgência de prosseguir objectivos comuns. Os teus argumentos, nesta matéria europeia, são por definição intergovernamentais, favoráveis a uma Europa governada pelo concerto (intergovernamental) entre os governos – tu próprio o escreves! O modelo que defendes, que é aliás o de antes das reformas institucionais tão reclamadas, tão insistentemente exigidas por todos os eurocépticos e intergovernamentais, laboriosamente construídas e ainda imperfeitas, esse modelo, caro João, leva inexoravelmente ao fim da União. Ou continuo a não compreender?

Escreves no teu artigo que eu tenho um problema bipolar e que na minha cabeça toca automaticamente uma cassete sempre que ouço criticar a União. Já estava surdo (ou louco), se fosse assim. Permite-me uma metáfora mais: há inúmeros caminhos para o futuro da EU. Aceito discutir todas as alternativas, mas não aceito voltar para trás. Nisso – seguir em frente, pelo melhor caminho para os europeus, ou voltar para trás – sou de facto bipolar.

Nada disto significa menos respeito pelas pessoas que defendem o fim da União, ou até pelas que acham que as suas posições não significam um retrocesso, os intergovernamentais ou soberanistas, como em tempos lhes chamou António Vitorino. Mas a luta pela Europa, caro João, é essencial, porque por ela passa a definição do modo de vida dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos.

Antes que se apaguem as estrelas. Com estima.