Logo no princípio da Introdução ao seu muito interessante e convincente livro sobre A nova direita anti-sistema. O caso do Chega (Edições 70), o politólogo italiano Riccardo Marchi lembra subtilmente “os desejos da comunicação social, há muito faminta de ver replicada, em Portugal, a onda europeia” de populismo. À partida, há dois motivos poderosos para tais desejos. O primeiro é a necessidade de encontrar um novo inimigo bem definido que encarne em si tudo aquilo contra o qual se julga dever combater, mesmo que, para esse inimigo cumprir cabalmente a sua função, seja necessário exagerar-lhe os traços ao ponto da caricatura (“fascismo”, “neofascismo”, etc.). O segundo é mais banal e prosaico. Se os outros têm, porque é que nós não haveríamos de ter? É o velho mimetismo nacional, que Vasco Pulido Valente não parou nunca de sublinhar, em todo o seu esplendor. Precisamos de importar praticamente tudo, dos bens de consumo material às atitudes políticas. Nisso somos, de facto, muito bons.

É apenas esta segunda tendência que me ocupa hoje. Mais precisamente, esta tendência tal como ela se manifesta por relação a um objecto particular, o denominado “politicamente correcto” (PC). Devem contar-se pelos dedos de uma mão as vezes em que usei por escrito esta expressão, sobretudo porque sempre me pareceu carente de dimensão descritiva. A sua origem, convém lembrá-lo, situa-se à esquerda. Servia para designar a posição daqueles que eram excessivamente zelosos, aos olhos dos mais liberais, na defesa das “posições justas”. É sobretudo a partir de 1990 que ela adquire uma significação mais próxima daquela que agora possui. Como se pode ver numa antologia de 21 artigos organizada por Paul Berman, publicada em 1992 e intitulada Debating P.C. The Controversy over Political Correctness on College Campuses. O debate, que percorre um vasto número de assuntos, mostra pelo menos três coisas: que a linha que separa as posições da direita e da esquerda é muito menos bem definida do que se tende a pensar; que a radicalidade e a consequência de certas posições é um facto palpável; e, o que só dificilmente pode parecer surpreendente, que os nossos representantes caseiros do PC se encontram, a esta distância toda, ainda na mais tenra infância da arte, não passam de meninos de coro. Não quero com este último comentário diminuir o alcance da célebre teoria dos piropos do Bloco de Esquerda ou das profundas elaborações dos discípulos do Professor Boaventura Sousa Santos. Limito-me a uma constatação: entre Portugal e os EUA, de onde praticamente tudo vem, há um trajecto abissal que só dificilmente poderá ser percorrido.

Paul Berman, na apresentação do livro, nota que o P. C. resulta do encontro do liberalismo americano com a filosofia desconstrucionista e, mais genericamente, pós-estruturalista, francesa. Não faria sentido, por muitas razões, estar aqui a falar de Derrida, Foucault, ou até de Lacan, dos seus méritos e deméritos. Mas faz todo o sentido mencionar que, até na linguagem, a influência é palpável. Um exemplo (que reenvia, de resto, ao estilo lacaniano). De acordo com uma autora, Barbara Johnson, alguém terá demonstrado de forma cabal o facto de que “a ginofobia [o medo das mulheres] se encontra estruturada como uma linguagem” e que, correspondentemente, “a linguagem se encontra estruturada como ginofobia”. O mesmo, sem dúvida, se poderia dizer da tontice…

Mas não queria insistir neste aspecto. A antologia de Berman lida, como disse, com vários tópicos, e fá-lo acolhendo simultaneamente pontos de vista conservadores e de esquerda. Um facto particularmente interessante, que referi de passagem e que seria hoje sem dúvida mais difícil de encontrar, representando um dos interesses maiores da arqueologia deste debate, é o da oposição das várias posições de esquerda. Uma certa esquerda – representada, entre outros, por aquele que é talvez o maior filósofo contemporâneo vivo, John R. Searle – defende, a partir do seu ponto de vista, posições que se encontram por vezes próximas de conservadores como Roger Kimball (cujo livro Tenured Radicals é muito informativo), enquanto que uma outra esquerda, a “esquerda cultural”, segue um caminho diametralmente inverso.

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Para esta última, o ensino universitário deve, antes de tudo o mais, inscrever-se num multicularismo radical, isto é, num multicularismo não mitigado e por inteiro alicerçado num identitarismo étnico inabalável. Só assim a “auto-estima” e o empowerment das várias minorias poderia ocorrer. Há aqui obviamente uma espécie de essencialismo que rejeita qualquer porosidade das culturas. Tal essencialismo é, no entanto, necessário para que a “acção afirmativa” seja levada às suas últimas consequências e para que o “eurocentrismo”, o privilégio dos dead white males, seja abolido, nomeadamente nos currículos universitários e no cânone dominante no estudo da literatura, por mais que tal cânone seja encarado, por uma parte dos conservadores e pelo grosso da esquerda liberal, como algo que se encontra em revisão constante. O que é importante, do ponto de vista do PC, é que cada comunidade étnica se baste sobretudo com o seu cânone exclusivo, pois só assim, fora de qualquer terreno comum, a “auto-estima” se poderá desenvolver. À custa de um apartheid voluntário? À custa de um apartheid voluntário, sim.

É esta atitude que legitima o chamado “afrocentrismo”. Para os afrocentristas, os egípcios – supostamente todos negros – foram espoliados pelos gregos da sua filosofia, toda ela de origem egípcia, e os africanos foram os primeiros a descobrir a América e encontram-se na origem das civilizações europeia e asiática. Se tudo isso passou desapercebido desde tempos imemoriais, tal deveu-se a um formidável empreendimento de ocultação por parte dos europeus, que tudo fizeram para calar esse ponto indisputável. É o que afirma, entre muitos outros, o principal teórico afrocentrista contemporâneo, o norte-americano Molefi Kete Asante. (Na sua óptima colecção “Livros vermelhos”, a editora Guerra & Paz publicou recentemente um óptimo pequeno livro do africanista francês François-Xavier Fauvelle, professor no Collège de France, intitulado A ideologia afrocentrista à conquista da história, em que faz um breve resumo das posições afrocentristas, incluindo um capítulo sobre a íntima relação entre um certo afrocentrismo, praticado na órbita da Nação do Islão de Louis Farrakhan, e o mais radical anti-semitismo).

Se me dei ao trabalho deste pequeno resumo – que não menciona sequer a questão central do policiamento da linguagem, das elaborações sobre o “discurso de ódio” e as chamadas fighting words –, foi apenas para sublinhar três aspectos. O primeiro, a tentação do apartheid voluntário que subjaz ao PC. O segundo, coerente com o primeiro, a destruição militante de um terreno de pensamento comum que nos una na busca de um entendimento tão vasto quanto possível das diversas culturas. Por último, o carácter finalmente timorato dos nossos radicais caseiros, que não têm a coragem de copiar (mesmo com muito atraso) até ao fim as fontes de que se servem para alimento espiritual. Não é que, em termos práticos, não prefira até que seja assim. É só que, do ponto de vista teórico, a incoerência lógica dificilmente poderá ser vista como um mérito. Força, camaradas, mais um esforço!