1 Jamais se fabricou planetariamente tanto perigo, nem tanto alarme. Demenciais, ambos. Chama-se a isto uma guerra.
Mas há mais guerras. Usando do combate ou da guerrilha, elas são inevitáveis, também já começaram e só não se autoconvoca para elas quem não vê, ou quem não quer ver. Nenhuma dessas circunstâncias é a minha. A primeira guerra – à segunda voltarei para a semana — é política e reclama combate duro porque é grande a pena e alguma a vergonha: o que se passa com as “autoridades”, das mais altas às outras, é difícil de compreender e ainda mais de aceitar. Se nada interessam agora gostos e desgostos politico-partidários, é-me a legítima a perplexidade e compreensível a indignação, num momento que deveria ser de consonância e acerto mas extraordinariamente não é. De nada serviu – tremenda constatação – a tragédia de centenas de mortos há três anos. Ninguém aprendeu com esse luto, ninguém cresceu em capacidade e liderança.
Como compreender que no actual estado de coisas o Presidente da República se permita dizer a um domingo que irá convocar o Conselho de Estado para quatro dias, quatro, depois? Mesmo concordando com a extrema delicadeza da decisão, pode imaginar-se algo de mais longe da gravidade das coisas? O país tem tempo para esperar quatro dias seja pelo que for? Ou ainda ninguém nas altas esferas do Estado alcançou ainda o quanto elas próprias se enredaram em atrasos e indecisões? Adivinho aliás que o desnorteio deva ser contagioso como o vírus porque não me lembro de ouvir um Chefe de Estado ocorrer-lhe falar em nome “pessoal”. Com que justificação e propósito? Já se estranhara a quarentena, igualmente se estranhou o véu de (misterioso) silêncio que durante dias – aqueles onde a descoordenação política e a aflição dos portugueses deram um gigantesco salto em frente — envolvera a casa do Chefe de Estado, em Cascais. Como se estivesse doente, não o estando (felizmente). Um silêncio só quebrado muitos dias depois, para nos informar primeiro sobre o Orçamento (!), depois para nos oferecer um discurso “pessoal” para cuja análise ou entendimento me sinto incapaz. Os portugueses não viram, não ouviram, nem tiveram o “seu” Presidente perto deles, durante dias. E a infelicidade de António Costa na sua intervenção do último domingo também surge como politicamente inexplicável (e pouco “fair”, mas ele lá saberá). Se o Chefe de Estado perturbou, o chefe do governo confundiu. Tudo o que se dispensava. Como se fosse pouco, ouvir Eduardo Cabrita é de cada vez ficar mais inseguro que na vez anterior.
Nada porventura se poderá dizer de mais desolador sobre um país do que constatar a impreparação dos seus protagonistas políticos no comando do flagelo que o corrói.
2 Ao contrário do que a má fé profissional poderá apressadamente fazer supor não uso deste teor, nem deste tom, por razões políticas “stritu sensu”. Nem essa contabilidade interessa num tempo que deveria de ser de inquestionável acordo entre instituições, medidas e pessoas, mas é, desde o primeiro minuto, de hesitação, precipitação e contradição. Mantêm-se erros injustificáveis – por incúria a fatídica linha SNS24 continua a não responder ou a pouquíssimo atender; por pura inconsciência a burocracia exigida no preenchimento de documentos para apoios vitais é aterradora; por aflição ou desnorte faz-se pouco caso de outros doentes graves; por descomando ainda há muitos locais e estabelecimentos comerciais abertos que a prudência recomendaria que fechassem. Ou seja, tudo indica que se irá passar, quase sem transição, de centros comerciais abertos para o “estado de emergência”.
Seja como for teria preferido louvar em vez de exibir esta tristeza envergonhada.
(Recordo aliás que, na semana passada, horas depois de ter mandado o meu texto para o Observador para “sair” na manhã seguinte, enviar um mail ao José Manuel Fernandes, por volta da meia noite, pedindo o favor de acrescentar ao texto um post-scriptum onde me congratulava com o “acordar” das autoridades para a desorganização vigente no país, confiando que “daí para a frente tudo melhoraria”. Fi-lo justamente por considerar que o momento exigia responsabilidade e compromisso e que era minha obrigação sublinhar aquilo a que chamei “mudança de atitude”. Até hoje não terei acertado.)
3 Nunca ouvi nenhuma autoridade política ou qualquer responsável estatal pela Saúde mencionar a oferta de 50 ventiladores por parte da CUF (e quem sabe, outras ofertas da recusada “privada” terão chegado também). Ignoro se cada um dos hospitais públicos terá 50 ventiladores cada um, mas tenha ou não, apraz-me sempre notar um bom gesto da sociedade civil. Como por exemplo, de sol a sol, o incansável trabalho das Misericórdias, por esse país fora, a acção do Banco Alimentar, as ajudas inesperadas, os vizinhos solidários, a oferta de acompanhamento, de serviços, etc.
Ou gestos inovadores como este da comunidade artística — cantores, tocadores, músicos — oferecendo concertos on line num festival que já se iniciou ontem e com título inspirado — “Eu fico em casa”. Boas notícias. E como os últimos serão os primeiros sublinhe-se aqui a capacidade de resposta da Igreja, ágil e veloz na concretização de um múltiplo conjunto de celebrações, orações, cerimónias quaresmais, que chegam via net, procurando estar com todos e responder a todos.
4 E foi via net, claro, que de Roma. onde tenho amigos, recebi duas pequenas notas, em resposta ao meu pedido de notícias. São palavras amparadoras. Escrevia-me um deles:
“Que tempos tão misteriosos e sofridos estes! Que Deus nos socorra, pois precisamos muito. O Santo Padre é o que mais luta, o que menos quer parar, com uma fé inabalável e um amor à Igreja verdadeiramente edificantes. Celebra a missa todos os dias em Santa Marta, com transmissão televisiva, recebe pessoas em audiência, mexe-se e faz mexer, acompanha, para todas as situações de sofrimento tem uma palavra, guia a barca de Pedro. Todos colaboram com ele. Lutando para não fechar nenhum serviço para o bem da Igreja universal, tentando encontrar formas novas de acompanhamento do povo de Deus (missas em streaming, criação de linhas telefónicas de apoio espiritual, apoio no terreno aos mais frágeis…). As Igrejas estão abertas, mas sem celebrações comunitárias inclusive a Santa Missa, o que é uma dor incalculável. Mas esta hora tem de ser aproveitada para semear a piedade, intensificar a oração, aproximar da Palavra de Deus e da comunhão espiritual, acompanhar como pudermos, chamar todos à alta responsabilidade do momento (que se prolongará, sabemos).”
E dizia-me uma amiga:
“Isto é também um teste à adaptação da sociedade da comunicação e da liberdade individual aos ditames do isolamento forçado. Eu vou começar a “gozar” uma Quaresma mais intensa de isolamento, de deserto, de reflexão e retiro, oração e frugalidade de mundanidades. Talvez não seja mau de todo. Como sairemos desta todos? Que mundo e que pessoas novas?”
Fortíssimas palavras.
PS: Agradeço aos médicos, agradeço o combate anónimo de centenas de profissionais, agradeço o permanente dom de si na linha da frente desta guerra.