1 Não há munições para o desigual combate contra este inimigo sem rosto que virou o mundo ao contrário. Desigual e implacável. Espevita o pior: o medo, a aflição, a insegurança. Perde-se o pé. Se juntarmos a isso o que antes já sabíamos – um país naturalmente desorganizado, mal servido em coordenação e apenas remediado no “vamos andando” – além do pé, perde-se o resto.

Com o trivial ainda se pode bem – mudar de hábitos, praticar disciplina, cancelar viagens, domesticar projectos, desistir de férias, anular caprichos e fantasias; com “este” desconhecido, já se pode pior. Não faço tenção de me deixar empurrar para dentro do medo, mas nunca me dei bem com a imprevisibilidade. E aqui só uma coisa é certa: a incerteza sobre a dimensão do desconhecido. Que o mesmo é dizer sobre as suas consequências.

A seguir há esse degrau intermédio entre a trivialidade de uma rotina alterada e uma imensa apreensão que é a renúncia. O renunciar ao que sentimentalmente nos marca: a antecipação da doçura do reencontro, o consolo dos sentimentos fortes, a joie de vivre com os amigos, o anúncio de uma nova vida. Por exemplo mas o exemplo é bom: chegavam filhos e netos das “europas” onde vivem – já não chegam; vinham uns amigos do estrangeiro passar uns dias a deambular pelo Oeste – não querem vir; vai nascer outro neto em Viena de Áustria de onde é a sua mãe, já não iremos tão depressa debruçar-nos sobre o seu berço (nem talvez tão devagar).

E depois há o último lance. Aí pura e simplesmente não sabemos. Só sabemos que tememos. Balançando, ora crédulos ora incrédulos, entre a esperança de que não seja nada connosco e esse terrível momento da privação da liberdade individual substituída brutalmente pelo isolamento forçado. Ou por pior.

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2 O céu toldou-se com o pesado agravamento do cenário nacional do vírus. Suspeito aliás que haja muito mais infectados do que se diz e muito menos “preparação” clinica e hospitalar do que nos prometem. Suspeito que não se fechem mais escolas por – pura e simplesmente – não haver dinheiro para “pagar” aos pais para ficarem em casas com os filhos. Suspeito que não nos digam mais, nem nos informem melhor por temer dar mas notícias. Suspeito que nos “bastidores políticos” desta tragédia nacional haja mais descoordenação do que concerto e que o desnorteio da aflição leve a melhor sobre a racionalidade da acção. Porquê? Porque o país nunca foi aquilo que habitualmente se chama, em sentido lato, um país “preparado”: para prever, para acudir, para resolver. Lembro, a propósito, um singelo exemplo: uma das unidades de “urgência” de um hospital da margem sul (creio que a de pediatria, mas não estou certa) encerrada há meses, está sempre para reabrir mas nunca “se” consegue que reabra… Se este simples caso é eloquente da impreparação para lidar com constrangimentos, face a um flagelo do alcance deste novo vírus todas as dúvidas serão legitimas. Péssimo augúrio. Repare-se ainda – ou sobretudo – nas noticias que chegam em sobressaltada catadupa, sobre a supostamente salvífica linha SNS24: ou “quase nunca atende”, ou “está sempre impedida”, ou por vezes, muitas vezes, as respostas da voz do outro lado do telefone “nem informam, nem tranquilizam” (relatos que me foram feitos por utilizadores da linha). A recente conferência de imprensa de duas responsáveis, Graça Freitas e Marta Temido, de pouco serviu. Tenho enfim a inquieta sensação de que tudo o que se faz parece aquém do que deveria ser feito. Ou do que JÁ deveria ter sido feito.

A situação, de tão tremendamente inexperimentada jamais me levará a condoer-me ou a fazer de conta que as coisas não são o que são: o Estado é fragilíssimo, a cultura de exigência tem poucos praticantes, o tecido económico não aguenta um sopro, o governo não esta numa boa, à frente da Saúde não está uma generala. Acresce uma verdade: nunca as qualidades de liderança de António Costa calharam bem com emergências. Atrapalha-se quando tem de as resolver mesmo achando – como é normal que ache – que faz o seu melhor. E Marcelo fechado em casa e vindo à janela como o Papa (santo Deus, que momento!) não ajuda à gravidade da situação. Interrogo-me aliás porque será que o seu lugar é em casa. Porque o silêncio é de oiro? Porque não tem nada para dizer? Porque não sabe o que nos dizer? Porque não sabe como sair “desta”? Ou porque está muito aflito?

3 Como nada virá a ser depois como era antes, também me interrogo sobre as consequências políticas de tudo isto (se restar pedra sobre pedra, claro está). Sobre as económicas o resultado dispensa duvidas ou apostas: serão desastrosas. Todos os sinais vermelhos estão de resto já acesos. Mas…em que estado de saúde politica ficarão os protagonistas políticos? Que fará Mário Centeno e até quando? A não generala Marta Temido sairá viva deste sulfúrico enredo? António Costa terá a força, a capacidade, a endurance, a coragem que o longo momento de adversidade que tem pela frente lhe exigirá, todos os dias, por tempo indeterminado? E logo a seguir para continuar a lidar – e a liderar – o Portugal irreconhecível que sair disto?

Ninguém no poder, do PR ao PM, passando pelo Executivo, se pode esquecer que o país dispõe de referências. Isto é, para o bem e para o mal, os portugueses já os viram agir em diversas circunstancias, das melhores, às mais trágicas, o que ditará a essas mesmos portugueses as expectativas que porão num futuro obrigatoriamente desconhecido..

Por mim não consigo antecipar o que venha a ser, daqui a muitas semanas ou muitos meses, o confronto desses responsáveis políticos com um país ferido a seu cargo.

4 Ser forte é o que nos resta? Será mas fazer bom uso da vontade – único factor distintivo que separa um forte de um fraco – já não seria mau nesta espécie de ribombante pré-apocalipse. Como por exemplo a vontade de resistir a meter a cabeça na areia diante da Itália “fechada” como se fosse uma loja ou uma torneira, voos interditos, fronteiras fechadas, circuitos impedidos entre os Estados Unidos e a Europa, cidades desertas, hospitais em tendas como na guerra, medo.

A vontade em ir resistindo à vida cancelada.

PS: Depois de uma perigosa fase de descordenação e ineficiência, foi evidente ao final do dia de ontem, quinta-feira, a concretização de uma tomada de consciência, séria e concertada, entre o Governo e as várias autoridades de Saúde. Apesar de permanecerem queixas e lacunas, alguma coisa mudou para melhor. É justo não só reconhecê-lo como agora (já depois de escrito e entregue o texto acima) deixar aqui o registo dessa mudança de atitude. Compete-nos no mínimo a responsabilidade de corresponder com bom comportamento. Por exemplo não indo para a praia com multidões…