1 Éramos donos e tínhamos certezas. Sobre nós, a nossa vontade, as decisões, os projectos, os empregos, os desejos, o futuro. E sobre a vida, claro (e até sobre o “melhor” prazo para o seu fim).

Grandes mestres do nosso próprio destino, sabíamos tudo, podíamos tudo, lidávamos com tudo — até com a lua – e, afinal, a ficção maior era essa. Reduzidos à mais extrema das vulnerabilidades e reféns da mais crua situação, aguardamos no escuro. À espera. Quietos, isolados, aflitos.

Talvez nunca o mundo tenha produzido tanto desconhecido perigo. “Não nos damos conta até que ponto é ilimitado o que ignoramos”, escrevia Antonio Muñoz Molina numa das suas crónicas na Babelia (El Pais) e, embora sobre outro tema, a reflexão encaixa aqui melhor que bem: quão ilimitada é a nossa ignorância sobre um “desconhecido” que um dia chegou sem pré-aviso e com devastação assassina?

A viver neste momento fora de Lisboa, é nos écrans televisivos que descubro um Portugal irreconhecível, cidades ocas de vida visível e visivelmente operativa. Somos as imóveis testemunhas de uma captura global pelo nunca experimentado.

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2 Se nunca se observou tamanha mobilização à escala mundial, dou-me porém confusamente conta de quão escassas são afinal as munições para a guerra contra este veneno (e para outras guerras). Amigos e amigas lastimam-me por utilizar expressões bélicas e belicistas. Nem tenho medo delas nem acho outras. Estamos a ser postos à prova: a munição da vontade será suficiente? A coragem será tão tenaz quanto a agrura e a amargura que serão necessárias para suster a adversidade?

Saberemos recolocar os portugueses no “patamar” de onde partiam para as suas vidas diárias e reorganizar a sociedade e as coisas de acordo com novas exigências e outros ritmos? Seremos capazes da dureza do combate social e político que nos convocará a todos, seja qual for o país que saia desta inimaginável provação? Responda quem ousar porque saber, não sabe ninguém.

3 Um dos traço porventura mais assombrosos deste desastre (falo obviamente apenas por mim) é o pesadíssimo confronto com a estranheza. Uma outra forma guerra. Tudo passou a ser-nos estranho. Como se subitamente se tivesse aberto um alçapão sob os nossos pés e nos tivessem brutalmente precipitado para um universo de irrealidade onde tudo ou quase, é desconforme com os quotidianos “conhecidos” e a vida de “antes”; o tempo que também deixou de ser “o de antes” – veloz, insuficiente, stressado – para se transformar num inquietante mar sem horizonte (e que poder, benéfico ou maléfico, terá sobre nós esse tempo inquietantemente vasto?); a provação dos filhos e netos só entrevistos por skype; a imobilidade que tudo nos tolhe e não só os passos; a privação das mil pequenas e médias rotinas e hábitos que ocupavam — e alimentavam — o nosso dia-adia; a conjugalidade, para o bem e para o mal, activada a uma velocidade superior aquela normalmente praticada “dantes”; a violência — violência, sim –, que pode deflagrar num quarteto ou quinteto de pais e filhos, prisioneiros sem prazo de três assoalhadas, sem vista nem varanda; a falta dolorosa dos amigos do peito e a ausência dos outros; a estranheza inclassificável, enfim, de uma nova forma de vida ainda à procura de mapa e bússola.

4 O tempo é de espera, mas nem o saber isso aquieta a dúvida: e depois? Que nova configuração moral guiará os passos dos homens, que novo mundo se reerguerá sob os escombros da infecção por entre os quais amanheceremos um dia? Que trarão no olhar os mais de mil milhões de pessoas hoje em exílio nas suas próprias moradas quando ressuscitarem para a vida lá fora, num planeta irremediavelmente marcado pela brutalidade do que ocorreu?

Não sei se alguma vez na história da humanidade se anteviu com tanta certeza a “diferença” que se interporá entre o “antes” e o “depois”. O antes do mortífero vírus e o depois do mortífero vírus. Saber como vir a lidar com ela, eis a questão.

5 “A Itália é a segunda pátria de toda a gente” (e quem duvida?). Já não me lembro de quem o decidiu, mas sempre fiz caso desta frase que li há muito e agora ando com ela vestida. O que lá se passa interpela-nos naturalmente. Filhos do mesmo berço, crescemos instruídos e moldados pela brilho e o génio de gregos e romanos. Nunca seríamos o que somos não fora uma extraordinária civilização que tudo criou e tudo possibilitou. A que deles herdámos e podemos por isso chamar nossa.

A guerra da Itália é connosco. O seu luto e as suas lágrimas também.