O observador avança que venda de medicamentos para crianças com hiperatividade atinge valor recorde. Na minha prática clínica recebo sistematicamente clientes com o diagnóstico pré-estabelecido de Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). Mas porque é que de repente as pessoas estão a ser catalogadas com esta perturbação?

Diagnóstico e Indicadores Clínicos da PHDA

A PHDA é uma condição que se encontra no centro de um amplo debate entre médicos e psicólogos, com o diagnóstico diferencial sendo um ponto chave dessa discussão. Em diversos países, existem várias condições que apresentam sintomas semelhantes à PHDA, tais como: défice de atenção; perturbação hipercinética; hipercinesia associada a disfunção cerebral mínima ou a lesão cerebral mínima; e perturbação da atenção, do controlo motor e da percepção. Todos estes termos descrevem distúrbios caracterizados por hiperatividade persistente, impulsividade e dificuldades em manter a atenção. Contudo, em Portugal, o termo mais comummente utilizado e reconhecido é PHDA.

Embora não existam biomarcadores que expliquem a sua prevalência, os indicadores clínicos da PHDA estão bem documentados. Podemos dividir esses indicadores clínicos em cinco domínios: Cognitivos, Afetivos; Comportamentais; Somáticos; Ajustamento psicossocial.

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De modo a não me alongar, pois o ponto fulcral da crónica não é este, irei apontar alguns dos indicadores clínicos mais frequentes na minha prática. Relativamente ao domínio cognitivo falamos da distração, dificuldades em estimar timings, inabilidade no planeamento, défice na memória e, no caso dos mais jovens, atraso na linguagem. Do ponto de vista afetivo temos por vezes baixa-autoestima, excitabilidade devido ao insuficiente controlo de impulsos e por vezes raiva devido à falta de tolerância. No que diz respeito ao domínio psicossocial, temos uma pobre internalização das regras de conduta social, que geram problemas relacionais com figuras de autoridade, tal como pais e professores. O que conduz por vezes, a nível comportamental, a um comportamento antissocial agressivo (comorbido), maior abertura para riscos e, consequentemente, uma alta prevalência de uso de substâncias como a cannabis. Neste último, por vezes, como meio de aliviar os sintomas, conforme sugerido por alguns estudos.

Sobrediagnóstico e Farmacoterapia na PHDA

Apesar do impacto altamente negativo que esta perturbação possa ter na vida de alguns jovens, já que a sua prevalência varia entre os 3-10%, sendo mais comum entre rapazes, a meu ver, o seu sobrediagnóstico pode ser ainda mais prejudicial.

Em primeiro lugar porque a técnica mais frequente hoje em dia para lidar com a perturbação é a farmacoterapia. Existem colegas e evidência científica que não corrobora o predomínio deste método sobre outros. Em segundo lugar porque vários estudos são unânimes quanto à eficácia dos fármacos tais como o metilfenidato (Ritalina) na redução dos sintomas a curto prazo, mas o mesmo é discutível nos efeitos a longo prazo. Até porque os efeitos a longo prazo podem incluir uma espécie de iatrogenia psicológica. Por iatrogenia psicológica quero dizer efeitos adversos que resultam de um determinado tratamento terapêutico.

Porém esses efeitos adversos podem não ser alvo de um estudo clínico aprofundado a longo prazo. Tal como refiro anteriormente, existe uma comorbidade (sobreposição) entre a PHDA e o comportamento agressivo. Esta sobreposição torna-se mais frequente nas crianças, onde inclusive possa existir presença de caraterísticas de comportamento antissocial. Embora nem todas as crianças bem classificadas com hiperatividade possam revelar essas caraterísticas, o comportamento hiperativo, agressivo e anti-social é bastante comum entre crianças e está bem documentado cientificamente, principalmente entre os rapazes.

PHDA e Agressividade: Uma Conexão Importante

Curiosamente se juntarmos todas as faixas etárias (infância, adolescência, adultez…) ficaríamos surpreendidos ao verificar que entre todas, a faixa etária que revela maiores índices de agressividade é a das crianças mais pequenas. Mais uma vez, esse maior índice de agressividade verifica-se nos rapazes. Todavia, é interessante que ao chegar aos 5 anos eles estarão mais ‘civilizados’, muito provavelmente por causa dos sentimentos de culpa interiorizados. Ao longo deste período também acresce ligeiramente a capacidade de empatia. Pankesepp encontrou um fenómeno parecido nos ratos jovens machos. Eles preferiam envolver-se em brincadeiras que privilegiavam luta. Estas brincadeiras diminuíam a sua agressividade. Porém, se os ratos fossem privados dessa brincadeira, eles revelavam má formação no desenvolvimento do seu córtex pré-frontal e, consequentemente, o surgimento de sintomas de hiperatividade.

Até porque entre os próprios adolescentes, a propensão para o comportamento agressivo, desviante e aditivo pode acontecer devido à presença de um córtex pré-frontal ainda malformado. Córtex este que muitas vezes é uma espécie de filtro que regula as nossas emoções e nos torna mais propensos a uma conduta social ‘aceite’. Assim, autores como Jordan Peterson argumentam que os jovens rapazes tendem a ter comportamentos mais agitados, algo que não é bem aceite nas escolas, onde se valoriza a tranquilidade e a quietude.

O Impacto da Tecnologia e Personalidade no Diagnóstico da PHDA

Adicionalmente, a crescente dependência da tecnologia, particularmente das redes sociais e dos videojogos, complica ainda mais este quadro. Apesar de poderem ser importantes fontes de informação e estímulo, o uso exagerado destes meios pode aumentar os padrões de dependência, alimentando incessantemente os sistemas dopaminérgicos dos jovens. Esta constante gratificação fará com que os jovens priorizem atividades prazerosas em detrimento de tarefas importantes, perpetuando um ciclo de adiamento. Por isso é que chegam imensos pedidos de escolas para avaliar o défice de atenção e hiperatividade, e já que esta avaliação é geralmente multidimensional, ou seja, incluí questionários com os pais, professores e diretores de turma, pode existir por vezes um certo viés.

A par destes fenómenos, existem certos tipos de personalidade que são mais proclives a certos sintomas relacionados com hiperatividade. Por exemplo, se alguém pontua no famoso big five uma personalidade altamente extrovertida e aberta à experiência, é provável exibir traços criativos, uma vez que são geralmente mais propensas a procurar novas experiências, ideias e perspectivas. Todavia se incluirmos o neuroticismo nessa equação, existe uma certa probabilidade de a pessoa revelar padrões de pensamento disfuncionais. A constante preocupação e ansiedade podem bloquear determinados fluxos de pensamento, de modo a que não haja um fio condutor. Nessa medida, o tempo de atenção sobre um determinado tópico pode ser diminuído por isso. Além disso costumo dizer que a maldição da criatividade é o neuroticismo, porque a pessoa neurótica subverte o mundo para o sublimar em arte. No entanto, esse fenómeno pode gerar por vezes sentimentos de alienação, distração e a dificuldade em seguir um plano.

Os Riscos do Uso Precoce de Medicamentos e o Debate Necessário

Um dos grandes riscos do uso precoce de medicamentos para tratar a hiperatividade e défice de atenção pode ser a mudança na forma como o cérebro da criança explora e aprende sobre o mundo. Isso pode, em alguns casos, reduzir o interesse e o prazer da criança em brincar e jogar, atividades essenciais para o seu desenvolvimento saudável.

Por isso é que o debate sobre estas temáticas é fundamental, nomeadamente no seio escolar. Uma análise centrada exclusivamente no modelo biomédico não é benéfica para as nossas crianças e jovens. É necessário que os psicólogos e educadores também se cheguem à frente, de modo a reformular o modelo de ensino. Até porque o modelo de ensino tradicional tem indiretamente empurrado os jovens a utilizar metilfenidato sem receita, de modo a melhorarem a sua capacidade de concentração. Embora não saibamos completamente acerca dos malefícios desta atitude, podemos teorizar sobre o potencial viés que leva os jovens a tomar uma atitude leviana sobre este fármaco. Nomeadamente o risco da etiquetagem. Quanto uma sociedade tem de estar doente para os jovens optarem por se catalogar e automedicar, em vez de enfrentar o risco e privilegiar a margem de erro necessária à boa vida?

Agora, para descontrair um pouco, acredito que, por vezes, a tendência para rotular com este diagnóstico específico advém do desconhecimento de um livro muito específico, onde o personagem principal pode ser altamente identificado por toda a gente, ou seja, o DSM-5. Talvez, se conhecessem, tivessem a mesma impressão, tal e qual eu e os meus colegas no curso de psicologia, preocupados a achar que possuíamos todo o tipo de perturbações.