O pior pedófilo será sempre o “melhor amigo” das crianças. Ou, pelo menos, aquele em quem elas mais acreditam e sentem que podem confiar até para as proteger. Será tanto pior e tanto mais agressivo física e emocionalmente, quanto maior for a confiança conquistada na relação com aquela que virá a ser a sua vítima. Também por isso é rara a criança ou o jovem que tem coragem para denunciar um familiar ou amigo da família. Por outro lado, aos pais é extraordinariamente difícil dar credibilidade a uma queixa relativa a um professor ou, pior ainda, a um padre.
Hoje em dia começa a ser menos difícil levar a sério uma queixa desta natureza – e essa é a primeira grande conquista da cimeira sobre abusos sexuais por parte do clero! – mas mesmo assim é preciso ter em conta que não é por haver cimeiras no Vaticano que uma criança ou jovem sexualmente molestados por padres vão a correr contar em casa o que se acabou de passar fora de casa. O silêncio é, por isso, o segundo maior inimigo de todas as vítimas. Calar e manter segredo absoluto começa por ser uma imposição do agressor, mas rapidamente se converte numa atitude da própria vítima, que se sente quase sempre culpada e tem repugnância em falar do que aconteceu. Isto para não falar do pavor de se expor.
Não consigo imaginar pior tragédia do que viver situações dramáticas, traumáticas, na mais completa solidão, temendo a insuportável repetição dos asquerosos acontecimentos, pois grande parte das vítimas sofre abusos continuados dos violadores. Sinceramente nunca serei capaz de saber o que é ser criança ou muito jovem e estar à mercê de terríveis lobos disfarçados de cordeiros. De padres perversos que antes de abusarem sexualmente, abusam da confiança e traem em toda a linha. Usam o seu estatuto, o seu poder, as suas falas mansas, supostamente bondosas e porventura encantatórias, para atrair vítimas e as massacrar.
Penso que nunca ninguém terá palavras à altura do sofrimento dos que são abusados sexualmente, sobretudo quando são menores e completamente indefesos. Pior ainda quando os abusos são continuados, repetidos em clima de violenta ameaça e agressiva supremacia do mais forte. Se a nós, adultos, bastaria acontecer apenas uma vez para nos matar emocionalmente e deixar marcas para toda a vida, como não será com crianças e jovens? Arrepia pensar nisto, mas é uma realidade tão incontornável que vale a pena determo-nos sobre ela para ajudarmos os nossos filhos, netos, sobrinhos, alunos, amigos e filhos de amigos a precaverem-se contra potenciais abusadores.
A primeira lição que devemos aprender e ensinar é a de não guardar silêncio. Quem cala nunca se protege a si mesmo, só está a proteger o agressor. Nesta lógica, temos que criar mecanismos para ajudar a quebrar o silêncio que muitas vezes se perpetua durante anos. Uma criança tem que ser ensinada a todo o custo a ouvir a voz da sua consciência e a saber que esta voz interior, digamos assim, nunca se cala. Todos temos mecanismos de alerta ativos que nos fazem fugir de perigos ou, em não podendo escapar, nos fazem sentir estranheza perante pessoas que têm comportamentos estranhos.
Se as crianças forem educadas numa lógica de estarem atentas aos sinais dessa mesma estranheza e dos perigos que encerra, mas acima de tudo, se aprenderem a comunicar esses mesmos sinais a alguém (deve ser sempre alguém que elas próprias escolham e não alguém que lhes é imposto!) sabendo que são ouvidas e tidas em conta, muitos males se podem evitar. Não todos, infelizmente, mas alguns.
Até há pouco tempo era impensável que uma mãe ou um pai acreditassem mais no filho menor do que no padre da paróquia, no chefe dos escuteiros ou em alguém aparentemente idóneo e com provas de confiança dadas. Hoje em dia as coisas mudaram e é possível detetar sinais de alerta. Agitação, nervosismo, recusa em estar na presença de alguém aparentemente inofensivo e até amigo, choro descontrolado, insónias, pesadelos e reações extremas podem ser alguns sinais. Mas as vítimas também podem dar sinais de grande abatimento e apatia, de isolamento, falta de apetite e crises nervosas inesperadas (para além dos sintomas físicos específicos que têm que ver com partes do corpo tocadas ou violentadas, claro, mas até estes sinais as crianças e jovens aprendem a esconder ou disfarçar por vergonha e sentimento de culpa).
Cada caso é um caso e acima de tudo importa que os adultos transmitam às crianças e jovens que ao menor sinal de estranheza comuniquem com alguém. Ou seja, evitem o silêncio.
Antes, custava perceber porque é que eram precisas décadas de abusos para finalmente se dar credibilidade às vítimas, mas agora deixou de ser assim. Não apenas na Igreja católica, note-se.
Nas questões de violência doméstica era frequente deixar passar muito tempo até agir para resgatar os agredidos, assim como muitas vítimas de assédio e toda e qualquer forma de bullying tiveram que suportar anos de abusos até conseguirem ter coragem para falar e serem levados a sério.
Foi assim com as vítimas de grandes pedófilos como Larry Nassar, o médico da equipe nacional de ginástica dos EUA, que molestou centenas de jovens. Foram precisas mais de duas décadas de abusos para ser julgado e condenado.
Nestas vésperas do histórico encontro no Vaticano, sobre abusos a crianças cometidos pelo clero, todos nos sentimos ligeiramente menos desprotegidos. O facto de haver finalmente uma cimeira internacional sobre o tema faz-nos acreditar que alguma coisa vai mudar. Falo da conspiração do silêncio na Igreja, mas também fora dela pois o silêncio é sempre assassino e mata emocionalmente tanto como os crimes dos próprios criminosos.
O Papa Francisco convocou a cimeira e vai presidir a um encontro inédito durante o qual muitas situações concretas serão relatadas. Vão ser dias duros, de via purgativa, mas acredito que marcarão uma nova era. E reforçarão uma nova consciência sobre o poder de cada um para saber ouvir e ler os sinais de alerta.
Movimentos como o #MeToo e outros provocaram muitos excessos, eu sei, mas tiveram a virtude de pôr o dedo na ferida e colocaram o tema do assédio na ordem do dia. Mais, fizeram com que muitos agressores fossem julgados e presos ou perdessem a credibilidade e os empregos, onde continuariam a ter muito ascendente e poder sobre potenciais vítimas.
Importa que esta cimeira traga uma nova certeza sobre o julgamento e punição dos agressores. Não era possível manter a impunidade nem o silêncio. Neste sentido, e mesmo sabendo que a partir daqui também se cometerão excessos (também eles perversos) e se apontarão dedos a alguns inocentes, ficamos um pouco mais tranquilos. Assim como já houve campanhas de prevenção rodoviária muito eficazes, de tolerância zero, esperamos que também a partir deste encontro no Vaticano a Igreja passe a ser um caminho seguro e haja tolerância zero para abusadores.