As palavras nem sempre carregam o mesmo sentido ou significado, não sendo por isso invulgar que aquilo que se ouve ou lê, ainda que verbalizado da mesma forma, aponte para caminhos distintos sobre o que se considera ser certo ou verdadeiro. Se um português rebarbado, por terras de Castela, por exemplo, perguntar a uma senhora de meia idade, “qual o caminho mais rápido até Braga?”, corre o sério risco de, na sua pura inocência, acabar algemado, detido e acusado de molestar o sexo oposto. Não é incomum, também, que certas marcas de automóveis tenham de adaptar a nomenclatura dos seus modelos a certas idiossincrasias locais; por exemplo, qualquer português que tenha visitado Espanha, no seu “Mitsubishi Pajero”, que por lá se chama “Montero”, terá notado que na rua não passa despercebido, o mesmo acontecendo para os que, distraidamente, adquiriram por cá um “Opel Ascona” (o qual, entretanto, passou a designar-se “1604” ou “1904”, consoante se tratasse de um 1600 cc ou um 1900 cc), lição aprendida pela Hyundai que, por ocasião do lançamento de um recente SUV, inspirado na bela região de Kailua-Kona, na Ilha do Havai, achou por bem que no nosso país – ao arrepio do resto da Europa –, o bólide se apresentasse sob o bonito nome de “Kauai”. Segundo o Autoportal, citado pelo site da TVI24, no Brasil, fizeram furor o “Ford Pinto” e o “Lancia Marica”, por razões que me dispenso a explicar: já na Suécia, a Mercedes esqueceu-se que, por lá, “Vito” é a palavra que nos conduz ao órgão genital feminino, enquanto que no Chile, e apesar das queixas dos revendedores locais, a Mazda insistiu em manter o nome do seu enigmático “Laputa”, mostrando quão persistentes podem ser os japoneses, na defesa da integridade das suas estratégias empresariais. São inúmeros os exemplos que nos mostram – com mais ou menos humor –, como o sentido das palavras se altera em função da região, da língua, e do próprio tempo em que são utilizadas.
Ao nível das ideias políticas, existem palavras que ganharam um estatuto tal que não há corrente ideológica que não as procure capturar para si, moldando-as, dando-lhes sentido e conteúdo semântico muito próprios, para que funcionem como pilares da mensagem que procuram projetar. Da esquerda à direita, todos os políticos lançam com emoção apelos à liberdade e à igualdade, sem que isso, para lá do significado folclórico, nos diga grande coisa. Desde que na Revolução Francesa o marketeiro de serviço, à época, construiu o mais forte slogan da política moderna – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” –, que todos os programas políticos e ideológicos se dedicam a torturar estas palavras, para lhes dar sentido e alcance que os conduza a um resultado qualquer. Não é por isso de espantar que os apelos à liberdade ou à igualdade possam surgir na boca e na pena de personalidades tão distintas como o Papa João Paulo II, John Locke, Luther King, Che Guevara, Churchill, Marx e até Estaline.
É por isso fundamental que, no momento em que optámos por usar certas palavras, saibamos qual o sentido que elas vão operar nos nossos interlocutores, e que ideias de base sustentam o nosso argumentário.
Desde a modernidade, e sobretudo, pelos que bebem na Revolução Francesa, a liberdade passou a ser vista e trabalhada na sua asserção mais formal, traduzindo-se, sobretudo, num sistema de regras, numa rede de restrição e ordem, assumindo, por isso, uma lógica muito mais institucional e muito menos individualista. Já na tradição anglo-saxónica, a liberdade tem sido vista muito mais como um legado civilizacional que distingue os britânicos e seus descendentes dos herdeiros dos povos escravos do Continente, desprotegidos do poder arbitrário do Estado. Esta maneira de ver a liberdade, que John Locke perpetuou com maestria, ficou por exemplo gravada na Declaração de Independência americana, que coloca a lei ao serviço da vida, da liberdade e da busca da felicidade. A existência de um sentido dual para a liberdade está também bem presente na obra, “Dois conceitos de liberdade”, de Isaiah Berlin, ensaio que, de uma forma muito feliz, sintetiza e organiza as liberdades positivas e negativas a partir da tensão existente entre um sistema institucional que aspira à normalização e à ordem, e as asserções que as olham como expressão da autonomia individual e pressuposto para a realização e a felicidade.
Ora, se durante o século XIX e parte do século XX, a igualdade esteve amplamente associada aos conceitos de liberdade, no sentido dual que acima identificámos, tendo ambas sido alavancas importantes para a afirmação de sistemas legais assentes na separação de poderes, da soberania assente no voto, na promoção de uma cidadania que nos situa a todos no mesmo patamar perante a lei, e na consolidação de uma tradição que coloca a pessoa concreta no centro da decisão, com a afirmação de toda uma vaga de direitos sociais, inspirada em correntes marxistas, socialistas, e sociais-democratas, que juntaram à ideia de justiça, uma dimensão económica e social, estas palavras passaram a ter um significado tão amplo e difuso, que passaram a sinalizar tudo e o seu contrário.
Desde que se afirmaram, no plano das democracias liberais, palavras como “liberdade” e “igualdade” têm sido capturadas pelos seus inimigos, e usadas como armas de arremesso ideológico para imposição de soluções totalitárias, ou de normalização do pensamento. Este processo de captura é, como referi aqui, antes de mais, cultural, e só depois, e em consequência, jurídico e político. Ora, no plano cultural, há muito que estão a ser desenhadas, de forma muitas vezes artificial, mutações semânticas destas expressões, cujo alcance as afasta do seu sentido original. A um ponto tal que, nos dias que correm, as principais liberdades individuais – aquelas que Locke colocava como sendo essenciais para que um qualquer cidadão construa a sua esfera de realização –, são diariamente postas em causa pelos promotores de uma igualdade e de uma liberdade que não aceita desvios, por as ter tornado instrumentais.
Na verdade, quando acreditávamos que já tínhamos aprendido tudo com as lições da História do século XX, eis que emergem, de novo, e de forma acelerada, construções políticas que olham para a liberdade como um instrumento ideológico e a igualdade como um resultado final que deve ser imposto por sistemas de regras, por redes de restrição e ordem que definam o que é ou não aceitável, muito para lá daquilo que são as opções individuais e as aspirações de felicidade de cada um. Seja em nome do combate ao racismo, seja na promoção de uma efetiva igualdade que, saudavelmente, deve existir entre homens e mulheres, seja na defesa da ecologia ou da saúde, assiste-se a uma captura do sentido e do alcance das ideias de liberdade e igualdade, ao serviço da imposição de narrativas que nos exigem resultados tão bizarros como o “fim da idealização da maternidade”, uma “representatividade” artificial “em cargos de liderança”, “a inversão do ónus da prova em caso de agressão sexual”, ou o “fim da pressão estética”, numa lamentável apologia da mediocridade que, como já deveríamos saber, é fonte de pobreza, desilusão, e infelicidade. O carácter autocrático destas formulações expressa-se na incapacidade de aceitar, no debate, qualquer nuance que se afaste daquilo que alguém definiu como sendo o desejado resultado final, um modelo de sociedade pré-definido e fechado, que importa impor, ainda que com os devidos sacrifícios.
Ora, os sacrifícios, esses, são todos aqueles que, em liberdade, muitos de nós não estamos dispostos a prescindir. A destruição da estética e da ideia de belo, a desvalorização da maternidade, a anulação de soluções meritocráticas, a fragilização da justiça baseada num juízo de culpa concreta, a despromoção de uma moralidade que é definida pelos valores e opções de pessoas concretas, com vontade e arbítrio para saberem o que é melhor para si e para os seus, em prol de soluções baseadas na cegueira da lei e por uma ideia artificial de comunidade, ganharam hoje um espaço de afirmação que não imaginávamos possível, há dez anos atrás.
Para os promotores destas narrativas, a liberdade e a igualdade são instrumentais, não estão ao serviço de pessoas concretas, mas de vanguardas ideológicas que continuam a querer derrubar as democracias liberais. Ignorando as dimensões negativas da liberdade, encaram a maioria das sociedades contemporâneas como herdeiras de um conjunto de práticas, instituições, incentivos e sensibilidades que promovem o que consideram ser a exploração do trabalho, a alienação dos seres humanos, e a degradação de uma ideia de liberdade que não pode ser alcançada dentro das estruturas atuais. Por exemplo, todas as correntes atuais do feminismo olham as “mulheres” como um grupo autónomo com interesses e aspirações semelhantes. Aquelas que recusem subscrever o receituário feminista – que inclui a desvalorização da maternidade, o combate não conivente com o “patriarcado”, a libertação da “pressão estética”, a crítica às estruturas empresariais, e uma visão das relações entre homens e mulheres construídas numa linguagem de opressão – são vilipendiadas e desvalorizadas na sua “feminilidade”.
A liberdade é, assim, vista como uma forma estranha de arbítrio, já que a decisão se traduz numa “tomada de consciência” sobre o “estatuto feminino”, e não em escolhas que visam a realização pessoal. Este tipo de estratificação, identitária, leva a uma completa anulação do sentido mais intuitivo do que é a liberdade, que assenta, obviamente, na possibilidade de cada um escolher o que é melhor para si. O mesmo tipo de mecânica está igualmente presente em certas fórmulas de combate ao racismo, na suposta defesa de minorias sexuais, ou de qualquer outra categoria que consiga encarcerar pessoas em concreto nas amarras de uma pretensa identidade que possa ser associada a uma qualquer forma de hipotética “opressão”. O mais grave, porém, é que a sofisticação destas narrativas está a conduzir à projeção de falsas identidades, exteriores aos sujeitos e à sua própria afirmação, que impõem construções artificiais que anulam as pessoas e as suas aspirações, que destroem o mérito, trazendo consigo um culto da mediocridade, da inveja, do ressentimento, do feio enquanto valor e enquanto aspiração, da anulação da biologia, seja no sexo, como no género, seja na desvalorização da maternidade, que faz das sociedades ocidentais, cada vez mais, comunidades sem pluralismo, sem esperança, sem futuro.
E sem criatividade. Tristes tempos vivemos hoje, onde há muito que não temos a sorte de descobrir, na filosofia, na música, nas artes plásticas, no cinema, as expressões da excecionalidade que, no passado, fizeram avançar a Humanidade.