Um dos mais velhos truques da política é esconder assuntos problemáticos na gaveta, na esperança de que, com o tempo e o caudal noticioso, nunca mais haja quem se lembre deles. Infelizmente, em Portugal, o truque revela-se geralmente eficaz. Felizmente, lá vão aparecendo uns chatos que insistem em não largar as pontas soltas. Hoje, o chato vou ser eu: onde estão os resultados dos eventos-piloto do sector cultural? Esta pergunta precisa de uma resposta que não seja mais areia para os nossos olhos.

A cronologia dos factos que enquadram estes eventos-piloto é fácil de resumir. Em Abril, o Governo anunciou a organização de eventos culturais com público, com o objetivo de aferir os riscos de contágio de Covid-19 e, em função desses resultados, ajustar as medidas específicas aplicadas ao sector cultural nos meses de Verão. Os eventos realizaram-se entre 29 de Abril e 9 de Maio, em cidades diferentes e em contextos diferentes — ao ar livre ou em sala, com público sentado ou em pé, com centenas ou milhares de pessoas. Só que os resultados não apareceram e, apesar disso, as medidas para o sector foram publicadas. Porquê? Ninguém sabe ao certo. Houve quem apontasse falhas na recolha dos dados, quem associasse a um erro informático e quem, na DGS, desmentisse tudo e explicasse somente que o alinhamento dos dados individuais tornava o “processo demorado”. Entretanto, festivais e concertos têm sido sucessivamente cancelados, tornados inviáveis pela incerteza. Quem quiser ler o detalhe desta cronologia poderá encontrá-lo no artigo que publiquei a 17 de Junho. Foi há um mês e, desde então, não se conheceu qualquer avanço no processo.

Entretanto, o tempo passou. O primeiro evento-piloto realizou-se há quase 3 meses (84 dias). Óbvio, nesta fase já não se trata de usar os resultados dos eventos-piloto para enquadrar as actividades culturais durante o Verão — praticamente todos os eventos de maior escala foram cancelados. Isso não justifica que se deixe cair o tema. Pelo contrário, fá-lo ascender ao escrutínio político: o que explica este falhanço com tamanho impacto cultural/ económico e quem são os responsáveis? Tem de haver uma resposta cabal e devidas consequências. Curiosamente, para além de alguns lamentos de agentes culturais (por exemplo, dos promotores de eventos Luís Montez e João Carvalho), pouco se fala no assunto. Os profissionais do sector manifestaram-se, mas os artistas não se uniram em força, como fizeram noutros países, para pressionar o Governo a divulgar informação. No Parlamento não há registo na base de dados de perguntas formais de que algum partido tenha questionado o Ministério da Cultura sobre a situação. Portugal está assustadoramente conformado com a mediocridade.

Comparar com situações análogas noutros países do espaço europeu é embaraçante. Mas também é útil, diria mesmo imprescindível, para se perceber que estes falhanços não são normais e que têm raiz, desde logo, na falta de planeamento e de transparência. No Reino Unido, o governo explicou todo o processo organizativo dos eventos-piloto numa única página online: que eventos seriam considerados, que investigadores coordenariam os estudos, quais as regras de acesso aos eventos-piloto, que resultados foram produzidos e quais as publicações já disponíveis. Os resultados da primeira fase são claros em associar riscos baixos, nomeadamente em eventos ao ar livre, muitíssimo mais seguros em termos de exposição do que, por exemplo, trabalhar num escritório bem ventilado — e, além disso, incluem muito mais informação comportamental do que mera contabilização de casos Covid-19.

Em Espanha, um concerto sem distanciamento social já havia sido organizado, no qual se concluiu pela inexistência de proliferação de casos Covid-19: dos 5 mil na plateia, só 6 casos foram detectados após 14 dias, com os resultados a serem imediatamente publicados. Em França, uma experiência foi recentemente feita: com 6 mil voluntários, 4 mil foram assistir a um concerto sem distanciamento social e 2 mil serviram de grupo de controlo para posterior comparação dos níveis de contágio de Covid-19. O concerto ocorreu a 29 de Maio e os resultados detalhados foram divulgados seis semanas depois. Conclusão: ausência de aumento de risco de contágio para quem esteve no concerto.

O que mostram estes exemplos internacionais? Primeiro, sugerem que é possível organizar eventos culturais sem com isso aumentar os números de infecções por Covid-19, consoante o cumprimento de determinadas regras. Segundo, realçam que a incapacidade de levar a cabo eventos-piloto, recolher os dados e produzir resultados é exclusiva das autoridades portuguesas. Agora, das duas uma. Ou essa incapacidade se deve à incompetência — falhas no planeamento, na recolha da informação, no processamento dos dados. Ou deve-se à falta de vontade para divulgar os resultados que, se forem consistentes com as evidências internacionais, seriam abonatórios para o sector cultural e factor de pressão para a reabertura alargada das suas actividades. O que sobra a nós, cidadãos, é a desconfiança. E, forçosamente, questionarmo-nos: até quando vamos tolerar o silêncio das autoridades públicas que, por incompetência ou por ocultação deliberada, fogem da transparência como o diabo da cruz?

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