A 29 de Julho, Beyoncé lançou um novo álbum que, instantaneamente, gerou uma onda de contestação: numa das canções, a artista menciona a palavra ‘spaz’, considerada ofensiva para quem tem deficiência — é utilizada como sinónimo de ‘estúpido’. Perante as críticas, Beyoncé poderia ter ignorado o assunto ou até defendido a sua liberdade artística. Mas a reacção da artista foi outra: desculpou-se e assegurou que retiraria a tal palavra da letra da sua canção.

O episódio soa a fait divers, mas interessa enquanto demonstração de como os artistas se deixam amarrar a indignações nas redes sociais, onde prevalecem ameaças de gente ofendida com o que é cantado, escrito ou feito. Ou seja, serve de exemplo de como os cantores e as bandas mais mediáticas hoje se submetem a esse condicionamento artístico: cada palavra é cuidadosamente escolhida para evitar ofensas, cada gesto é cuidadosamente estudado para prevenir acusações.

Olhando para trás, é fácil convencermo-nos de que passámos do 80 ao 8. Os maiores artistas do rock dos anos 1960 aos anos 1990 afirmaram-se através de canções que, deliberadamente, pisavam o risco quando cantavam sobre mulheres e homens, sobre nacionalidades e culturas, sobre orientações sexuais e, claro, sobre sexo (incluindo com menores). Era provocação, sim. Mas era também uma saudável indiferença às polémicas e às críticas, que sempre existiram. Onde hoje se acha normal o condicionamento asfixiante da autonomia artística, no passado havia uma afirmação de liberdade quase total. Uma liberdade tal que, por definição, seria sempre ofensiva para alguém, mas que não impediu que muitos artistas fossem (e ainda sejam) celebrados.

Brown sugar” (1971), dos The Rolling Stones, conta a história de um homem que, em Nova Orleãs, compra uma jovem escrava negra para satisfazer as suas fantasias sexuais sadomasoquistas — uma canção focada na sensualidade da mulher negra, sem qualquer rasto de censura social. Ainda sobre questões raciais, “One in a Million” (1988), de Guns n’Roses, expõe uma visão xenófoba sobre os imigrantes nos EUA que “espalham doenças” e que “pensam que podem fazer o que querem” — já agora, na canção, os homossexuais são metidos no mesmo saco. De resto, são várias as bandas que, num ou noutro momento, aderiram à misoginia, reduzindo as mulheres ao papel de satisfazer sexualmente os homens. Os AC/DC fizeram carreira a cantar sobre álcool, mulheres e sexo, celebrando aquilo que o Twitter hoje chamaria de ‘masculinidade tóxica’. “Some Girls” (1978), dos The Rolling Stones, é uma sequência de caricaturas sobre mulheres de diferentes etnias e nacionalidades — as mulheres negras só querem sexo, as mulheres italianas só querem carros, as mulheres chinesas são matreiras. Se fossemos a outros estilos para além do rock, como o hip-hop e o rap, a redução da mulher a objecto sexual seria ainda mais frequente.

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Daí que não seja de estranhar que a violência (física ou psicológica) sobre as mulheres esteja tão presente em várias canções dos clássicos do rock — e até nas vidas dos artistas, como John Lennon ou Serge Gainsbourg, um sedutor que era também um conhecido agressor. Voltando aos The Rolling Stones, “Under my Thumb” (1966) é sobre um homem a gabar-se de ter domínio total sobre uma mulher (o que ela faz, o que ela veste, o que ela diz), ao ponto de a descrever como animal doméstico, a sua “gata de estimação”. Jimi Hendrix, no seu clássico “Hey Joe” (1967), conta a história de um homem que mata a mulher por ciúme. Os próprios The Beatles já tinham aflorado a violência doméstica em “Run for your Life” (1965), a propósito de ameaças de morte em caso de traição.

Quando o tema é sexo com menores, os exemplos são ainda mais abundantes. Há “Goin’ Blind” (1974), dos Kiss, sobre a relação de um homem idoso com uma jovem de 16 anos — os Kiss voltaram ao tema em “Christine Sixteen” (1977). Há a “All in the Name of…” (1987), dos Mötley Crüe, sobre uma rapariga de 15 anos de “tirar o sono” — acerca da qual assumem: é ilegal, sim, mas legal não é a cena dos Mötley Crüe, que venderiam “a alma por sexo”. Há, também, “Don’t Stand so Close to me” (1980), dos The Police, sobre o romance interdito entre um professor e uma aluna de liceu. Ou, ainda, os The Doors em “Alabama Song”, na qual Jim Morrison procura desesperadamente um bar de whisky e uma moça pequena. E, por fim, há as canções explicitamente perversas. Por exemplo, Steely Dan, em “Everyone’s Gone to the Movies” (1975), canta sobre um homem que convida crianças para ver filmes (supõe-se que pornográficos) em sua casa e se “divertirem” com ele, desde que não contem aos pais.

A lista poderia ser ainda mais longa, mas o ponto já está ilustrado: a esmagadora maioria destas canções, hoje, não seria editada ou, pelo menos, não o seria nos termos em que surgiu nos respectivos discos. Dir-me-ão: ainda bem. Em parte, sim, porque há uma saudável evolução cultural (sustentada, por exemplo, na defesa de direitos das mulheres e das minorias raciais) nos últimos 50 anos que altera substancialmente a abordagem destes temas. A parte má é esta: nenhuma destas canções seria hoje assim editada porque nem os artistas nem as editoras discográficas se atreveriam.

Eis o que me parece triste de constatar: paralelamente à saudável evolução cultural, instalou-se uma cultura de intolerância para com tudo o que se desvie ou transgrida as normas sociais — que passou a ser visto como ofensivo. Nos anos 70 e 80, o rock afirmou-se ao ritmo de uma cultura de transgressão. Actualmente, impera a conformidade — a maioria dos artistas esforça-se para evitar desalinhamentos e corrige rapidamente o que possa ser recebido como ofensivo. Ou seja, na música (e não só), aceitou-se como normal ser-se hoje muito menos livre do que se era nos anos 1980. Em vez do culto da transgressão, caiu-se no extremo oposto — o do medo da ofensa e de uma obsessão doentia pela conformidade.

Se a questão se resumisse à arte que fica muitíssimo menos interessante, já seria lamentável. Mas, tudo piora quando mergulhamos no cerne da questão, escondido por detrás de aparentes faits divers como o de Beyoncé no início deste artigo: neste receio da crítica que os artistas exibem habita um pequeno sintoma de uma sociedade que se quer moderna e tolerante, mas que se tornou asfixiante e iliberal.