1 Há um sopro de irremediabilidade no ar. Vive-se entre o alheamento e a descrença, numa espera parada. Ninguém (ou quase) acredita em nada. Seis anos deste socialismo que Mário Soares nem abraçaria, nem praticaria, forçaram-nos a uma condição muito pouco parecida com o que deve ser uma vida de plena cidadania: um colectivo de mais de setenta pessoas (o maior de sempre) que em vez de governar nacionalmente – para isso foi (finalmente) eleito há dois anos – o faz para os “seus” e para o funcionalismo publico, dividindo os portugueses entre filhos e enteados. Não há procura de bem comum, há afã e afinco numa acção política de defesa de uns e desconsideração dos outros: beneficiando quem pertence ao universo do voto antecipadamente assegurado e desconfiando de quem se activa a produzir riqueza, que é o outro nome para quem tenta fazer crescer um país impedido politicamente de crescer. Cresce o Estado. ( e até onde crescerá ainda?), ampliando diariamente uma administração pública cuja dimensão é directamente proporcional à sua estrondosa, vergonhosa, indecente, ineficácia. Não é difícil antecipar uma herança que um dia, indefesos e aflitos, os nossos netos descobrirão que se chama Portugal.

2 As sondagens mais dia menos dia são assim capazes de começar a resvalar para o ilusório: a abstenção tem sido demasiado eloquente para ser disfarçada, o governo – minoritário – representa quarenta por cento de muito menos do que se pensa. De fora do perímetro do funcionalismo público e dos dependentes da família socialista alargada (ambos solidamente ancorados na forma-mentis portuguesa, é verdade) há no entanto muita gente que começa a não gostar do que vê. Há sim, mesmo que não pareça ou que ainda não seja a toada geral. Gente que não gosta deste modus faciendi político, que não gosta de se saber enteada em vez de filha de pleno direito; gente que já se apercebeu que como nos termómetros a febre da corrupção tem subido (e a decência descido); que se enoja (desculpem) de ver governantes sentados na sua própria irresponsabilidade, continuarem também sentados no conselho de ministros; de ouvir a toda a hora – sem sombra de pudor ou vergonha –evocar os milhões para a TAP ou para os Novos (e velhos) bancos, enquanto se atrasam prometidos e calendarizados apoios ou quando as (insubstituíveis) Instituições de Solidariedade Social quase agonizam.

Já se sabe? Já, nada disto é de agora. O que pode ser novo é a consciencialização disto, ou seja o poder transformador dessa mesma consciencialização, assuma ela a forma que assumir. Não há alternativa? Até haver, não há (La  Palisse não o diria como mais brilho)A diferença é que essa espécie de paralisante ausência de alternativa que o país interiorizou como um “dictat”, um dia também se sumirá do horizonte. A política é pródiga em surpresa.

3 Claro, já se sabe, vem aí muito, muito, dinheiro. Outra ilusão: sulfúrica para Portugal, venenosa para o governo, nefasta para os portugueses. De resto, fora do reduto do “eles” (“eles” são a vasta família que nos desgoverna mais os seus dependentes) quantos são os portugueses que acreditam: 1) que o tal Plano de Recuperação irá ser bem aplicado? 2) que a sua concretização contemplará as prioridades e necessidades prementes do todo nacional e não só alguns dos seus sectores políticos, económicos, sociais, sociológicos, em detrimento dos do costume? Poucos acreditarão. Ou seja, poucos acreditam que daqui a meia dúzia de anos, o país tenha dado boa, proveitosa e equitativa conta dos milhões que pediu para ir com pressa levantar ao banco (pedido infelizmente imortalizado por uma câmara de televisão: dormiríamos melhor se quando nos contassem, pudéssemos ao menos duvidar).

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4 Ninguém melhor do que o Presidente da República sabe tudo isto. E como sabe, Marcelo teme: pelo destino do PRR, pelo efeito potencialmente errado das escolhas e prioridades nele contidas, pela incerteza que dessa lista de escolhas resulte um Portugal “melhor”; pelas divisões que acentuará no país e na sociedade portuguesa.

E por isso repete a torto e a direito que “crise” nem pensar: está fora do menu presidencial ou como dizem nas perfumarias “o artigo está descontinuado”. Somar uma crise de proporções desconhecidas à complexíssima concretização de um Plano desta envergadura financeira e política, ”nem pensar”. Por saber que Marcelo pensa tudo isto, pertenço assim ao (diminuto?) grupo dos que nunca acharam que aquele torpedo disparado sobre António Costa – “sou eu que nomeio o Primeiro-Ministro e não ele que nomeia o Presidente da República” – fosse um pré-aviso de crise ou um anúncio de ruptura. Foi um sinal de desagrado, o que não é o mesmo. Ou melhor, foi o que o Presidente acha que pode fazer.

5 Acha mas é pena que ache. Sucede que o Chefe de Estado não está infelizmente certo ou tão certo como pensa. Ou melhor, tão “limitado”. Há folga ( se ele tiver fôlego) para mais exigência de responsabilização ou pelo menos uma considerável parte dos portugueses e não apenas do centro ou da direita, percepciona que há.

Muito provavelmente se o PR me ouvisse diria que o faz em privado. Seja, mas não chega: o país precisa de saber que o faz, que também se espanta, se indigna, se aflige. Mais: uma coisa é uma crise, outra, o peso da sua palavra, que não do seu comentário; ou a influência da sua magistratura, que não se pode confundir com omnipresença.

E ainda: uma coisa é infantilizar os portugueses com selfies e excesso de proximidade, outra, saber mobilizá-los para um combate e o país precisa de alguns. (e só estou agora a pensar na educação e na justiça).

6 O pior que podia acontecer era o Presidente da República também se deixar contaminar pela sensação de irremediabilidade que tinge boa parte do ar deste tempo.

Ou já deixou? Ás vezes parece. Mas pode ser que eu esteja enganada.