Ao princípio, tudo prometia correr bem. Ah, sim, falo da pandemia. Para aqueles que vivem por cá mas têm a cabeça nos EUA, a quarentena quase pareceu uma intervenção divina: ia interromper a prosperidade económica que prometia reeleger Trump, e por isso mesmo, ia também levá-lo a resistir ao confinamento, tornando fácil atribuir-lhe a culpa de todas as mortes associadas ao vírus.

Quanto à terrinha, as coisas também pareciam promissoras para o poder socialista. Para não cometer erros, bastava fazer o contrário de Trump. Ele tinha dúvidas sobre a quarentena? Pois aqui não ia haver dúvidas nenhumas, era mandar toda a gente para casa, os que podiam e os que não podiam. Entre os  que podiam, estava, felizmente, o funcionalismo, com direito a mais um aumento de remuneração em teletrabalho. Quanto ao outros, haveria certamente estragos: falências, desemprego. Mas por entre pedidos de subsídios e promessas de apoios, eis a ocasião para vencer de vez os debates ideológicos com a vitória total do Estado. “Quem é que agora é liberal?”, repetiam entre si os microfones da oligarquia, muito satisfeitos. Começou-se até a falar de “nacionalizações” como se tivéssemos voltado às assembleias do MFA, de cabelo comprido e calças à boca de sino. Mais: esta era uma crise internacional. Justificava o silêncio vergado da oposição, e, claro, a exigência estridente de dinheiro, perdão, de “solidariedade” europeia. Siza Vieira, eufórico, proclamava que ia haver mais recursos do que nunca. O vírus parecia a melhor notícia de todos os tempos. Em suma: Trump derrotado, o liberalismo desmentido, o funcionalismo em casa com um novo aumento, a oposição calada, o SNS como nova religião do Estado … A certo ponto, pareceu que a única questão estava outra vez em adivinhar o tamanho da lendária maioria absoluta de Costa, sobretudo quando as duvidosas estatísticas de infectados serviram para fabricar o “milagre português”.

Era como se Deus se tivesse feito português – e socialista. Que mais se podia pedir? Mais isto: abrir excepções à quarentena, para mostrar quem manda em Portugal e de quem interessa ser amigo. Os católicos tiveram uma das suas grandes peregrinações do ano durante o confinamento. Azar. Ficaram em casa, vigiados pela polícia. Mas exactamente na mesma altura, comunistas e bloquistas puderam passear em massa por praças e ruas, a comemorar as velhas datas do calendário revolucionário português e as novas efemérides do calendário revolucionário americano, que vai substituindo o primeiro, à medida que a esquerda se deixa colonizar pelos EUA.

Mas eis que, de repente, as coisas põem má cara. Infecções descontroladas, o turismo estrangeiro evaporado, a crise económica mais grave e mais prolongada de sempre, o desemprego a subir, e a possibilidade de o dinheiro dos alemães não ser suficiente. Pode ser assim, ou pode ser pior. Mas para o poder que os socialistas começaram a montar há 25 anos, nunca há responsabilidades, e portanto problemas. O descontrole sanitário? É culpa dos directores da saúde.  As reservas turísticas canceladas? É culpa dos estrangeiros. O desemprego? É na restauração e no resto da indústria turística, para provar que a ganância dos privados tem custos. E mesmo que o dinheiro não chegue para todos, chegará para os amigos. E, claro, se tudo correr mesmo mal, não esquecer a desculpa: foi a epidemia; fez-se o que se pôde.

Mas, não, não foi a epidemia. Não foi a epidemia que criou uma economia estagnada, que só o turismo anima. Não foi a epidemia que criou uma dívida enorme, que agora limita o alcance dos auxílios estatais. Não foi a epidemia que criou a desigualdade entre o público e o privado, que divide, em termos de rendimentos e de segurança, a sociedade portuguesa. Não foi a epidemia que fez dos debates na comunicação social um simulacro, com interlocutores escolhidos pela sua ligação ao poder. Não foi a epidemia, em suma, que criou o sistema de poder socialista que, desde 1995, paralisou a economia, agravou a desigualdade e diminuiu o regime democrático. E sim, isto só pode correr mal, e vai correr mal, agora ou mais tarde, porque não se pode desfazer e desmoralizar um país, e esperar que depois tudo corra bem.

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