1 A má relação que os socialistas têm com a maioria absoluta nasce de dois momentos antagónicos. O primeiro tem a ver com a narrativa da “ditadura da maioria” ou do “poder absoluto” que o PS sempre atribuiu às maiorias de Cavaco Silva entre 1987 e 1995, tentando assim colocar segundo plano as profundas reformas que aquelas maiorias promoveram no país.
Já o segundo momento está relacionado com o próprio PS, através da maioria absoluta de José Sócrates. Esse, sim, um verdadeiro “poder absoluto” que tentou capturar todas as instâncias de escrutínio institucional, reduzindo às cinzas o sistema de freios e contra-freios, e tentando controlar (com bastante sucesso, refira-se) a comunicação social.
A evocação que António Costa fez em março, na tomada de posse do seu Executivo de maioria absoluta, tem precisamente esse duplo sentido.
É certo que o primeiro-ministro (PM) estava a referir-se ao período do cavaquismo. Sem que este seja um período perfeito (longe disso, porque houve efetivamente abusos nos governos do PSD), devo dizer que a carapuça do “poder absoluto” cabe muito melhor a José Sócrates. E foi também a esse ‘peso na consciência’ na cabeça dos socialistas (nomeadamente na sua própria cabeça), que Costa aludiu.
2 Como sabemos, os socialistas são os verdadeiros especialistas nas narrativas. Daí que António Costa prometa desde o dia da tomada de posse uma maioria de “diálogo” “parlamentar, político e social”. Tudo para ser diferente do diabo chamado Aníbal Cavaco Silva.
Ora, ao fim de quatro meses, a bota começa a não bater com a perdigota.
Perante a proposta do PSD e de outros partidos de recuperar os debates quinzenais — um sinal claro de que o novo líder Luís Montenegro quer mesmo fazer oposição —, os socialistas já querem usar o travão da maioria absoluta para impedirem um escrutínio parlamentar mais intenso. Ou seja, em vez de um diálogo parlamentar, o PS de António Costa prefere o monólogo da maioria absoluta.
Uma situação muito estranha porque é o PS a falar contra o próprio PS. Isto é, o modelo de debates quinzenais foi criado pela maioria absoluta de José Sócrates e por proposta do também socialista António José Seguro. Enquanto Sócrates, um líder político que sempre teve (e continua a ter) uma relação péssima, enfrentou de caras o escrutínio parlamentar, António Costa parece ter medo do Parlamento.
Bem pode a proposta do PS de alteração do regimento parlamentar garantir que os socialistas estão “desejosos de reforçar as possibilidades de escrutínio parlamentar da atividade governativa”, que a prática demonstra precisamente o contrário: propor a ida do PM uma vez por mês (na prática, é isso que é proposto ao sugerir-se a “alternância” entre a presença de Costa e de um ministro) não é nenhum reforço.
Bem pode Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, usar a política da intriga para explorar as diferenças entre Rui Rio e Luís Montenegro, que a questão é muito clara: o PS de António Costa já tem os tiques da “ditadura da maioria”.
3 Acresce outro sinal no mesmo sentido: o veto da chamada de Pedro Nuno Santos à Comissão de Obras Públicas. Também aqui bem pode o líder parlamentar do PS garantir que acredita “genuinamente no trabalho parlamentar”. Desde que, acrescento eu, isso não embarace os socialistas ou não crie problemas políticos sérios. Escrutínio, sim, mas poucochinho, sff.
É perfeitamente atendível que, em termos de tática política, se tente bloquear o requerimento da oposição para que a crise política seja definitivamente encerrada. O que já não faz muito sentido é essa atitude política sonsa de querer ser bonzinho, de que “nunca seremos como a maioria absoluta cavaquista”, mas, no final do dia, as práticas serem as mesmas que imputam ao PSD.
O ministro Pedro Nuno Santos até faz questão de dizer que “não sou fragilizável.” Ora, se o Governo tem o ministro mais destemido desde o 25 de Abril, porque razão o escondem? A maioria não deve ter medo de mostrar um dos seus melhores ativos e um mais que provável sucessor de António Costa. Aposto que Pedro Nuno Santos ainda daria uma goleada à oposição.
Seja como for, o PS chumbou a audição, alegando que o ministro das Infraesruturas já tinha sido chamado à mesma comissão para falar no dia 13 de julho, podendo os partidos da oposição colocar as perguntas que quiserem sobre a crise política e o novo aeroporto de Lisboa.
Veremos como o PS, Pedro Nuno Santos e a oposição se vão comportar.
4 Luís Montenegro está em estado de graça como novo líder da oposição e, refira-se como elogio, que não tem cometido erros como presidente do PSD. Mais importante: a sua ação política já está a condicionar o Governo.
Os habituais comentadores de bancada que criticaram Montenegro por ter feito questão de ter o seu primeiro ato como líder do PSD em Pedrógão Grande não perceberam a lógica. O social-democrata queria sinalizar dois aspetos fundamentais:
- recordar o maio falhanço de sempre deste Governo ao não ter impedido as mortes de mais de 100 cidadãos nos incêndios de 2017;
- E enfatizar a importância que irá dar ao combate aos fogos florestais.
Ora, a deslocação de Montenegro foi bem sucedida e está na origem de uma atenção muito aguda que o PS passou a dar ao combate aos fogos florestais desde o passado fim-de-semana. E com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, uma vez mais, a ser uma espécie de porta-voz do Governo ao anunciar medidas que são da competência do Executivo — e não do Presidente.
O mínimo que podemos dizer sobre Montenegro é que temos líder da oposição. Finalmente.
Eis um facto que só pode deixar todos os democratas satisfeitos. Porque o trabalho do principal partido da oposição é fundamental para termos uma democracia mais saudável. Por acaso, até é o PS que costuma cumprir com mais competência esse papel, escrutinando de forma muito profissional e organizada. É altura do PSD também ser competente nesse papel.
Quanto aos tiques da ditadura da maioria, aposto que só se irão agravar. Sete anos de poder com a perspetiva de ir até aos onze anos tornam esse facto inevitável.
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