O Presidente russo, Vladimir Putin, perdeu uma grande oportunidade para bater Joe Biden aos pontos, ao não responder à acusação de “assassino” com o anúncio dos nomes dos mandantes e executores do assassinato e do envenenamento de conhecidos líderes da oposição e de jornalistas russos. Em vez disso, foi desenterrar a acusação soviética de que “na América lincham os negros”.

É do conhecimento geral que as relações russo-americanas estão a atravessar um dos períodos mais complicados da sua história, mas não há memória de que um dirigente norte-americano tenha chamado assassino a um líder russo. A actual guerra entre a Casa Branca e o Kremlin faz lembrar a “Crise das Caraíbas” de 1962, mas, por enquanto, a nível verbal.

Numa entrevista a um canal televisivo norte-americano, o novo inquilino da Casa Branca, Joe Biden, admitiu que considera o seu homólogo russo Vladimir Putin um “assassino” e que ele iria “pagar” por se ter ingerido nas eleições nos Estados Unidos.

Normalmente, este tipo de linguagem é utilizado para caracterizar ditadores odiosos e criminosos dos chamados países do Terceiro Mundo, mas não em relação ao “czar” de uma potência nuclear como a Rússia.

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Pelos vistos, ao fazer uma acusação tão forte, Biden tem provas e, ao mesmo tempo, tenta contra-atacar a política externa agressiva russa e retirar-lhe o poder de iniciativa pelo menos no campo do discurso.

Essa política externa começou a ser realizada em 2008 com a invasão da Geórgia e continuou, em 2014, com a anexação da Crimeia e a ocupação do Leste da Ucrânia por tropas russas disfarçadas de separatistas. A partir de então, Putin não parou de surpreender com a sua prontidão para tomar medidas ou fazer declarações extremistas inesperadas, que o chamado Ocidente já não estava habituado a ouvir e, por isso, reagia de forma passiva. Basta recordar, por exemplo, a ameaça de Serguei Lavrov, “correia de transmissão” da política internacional do Kremlin, de romper relações com a União Europeia. Bruxelas não encontrou melhor forma de responder a essa ameaça do que o envio a Moscovo de Josep Borrell, Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, onde foi sujeito a uma grave humilhação diplomática.

Mas, desta vez, as declarações de Biden parecem mostrar que Washington está pronto para também lançar ataques verbais preventivos e surpreendentes. E a primeira ronda apanhou Putin desprevenido.

Na sua resposta, o Presidente russo desejou “saúde” a Joe Biden, dando assim a entender que a idade deste pode estar na origem de tal declaração. Além disso, acrescentou que “as pessoas costumam ver as outras como na verdade se estão a ver a si próprias”.

Vladimir Putin poderia ter aproveitado a ocasião para mostrar que realmente não é um assassino, revelando os nomes dos verdadeiros culpados dos assassinatos e envenenamentos dos opositores e jornalistas russos. Um dirigente com muito mais poderes do que o seu homólogo norte-americano, que é elogiado pela televisão russa pela forma como reage agilmente de forma a não deixar cair a sua caneta da secretária, não consegue apurar a verdadeira autoria dos crimes políticos?

O dirigente russo preferiu desviar as atenções do público como faziam os líderes da União Soviética. Quando esta era acusada de violar os direitos humanos, a resposta dos comunistas era: “Mas nos Estados Unidos lincham os negros.”

“No que diz respeito à elite americana, à classe dirigente, a sua consciência formou-se em condições conhecidas e bastante complicadas”, declarou Putin ao falar com os habitantes da Crimeia por videoconferência. E precisou: “A colonização pelos Europeus do continente americano esteve ligada ao extermínio da população local. A um genocídio, como se diz hoje. A um genocídio directo das tribos índias.”

Putin não passou ao lado da escravatura e da situação dos negros nos Estados Unidos, considerando que na história americana houve um “período de escravatura muito cruel, longo e pesado” e que “até agora, os afro-americanos defrontam-se com a injustiça e o extermínio”.

Que dizer destas declarações? Concordo praticamente com tudo, excepto com a afirmação de que continua o extermínio dos afro-americanos. Mas já que o “czar” gosta tanto de mergulhar na história, ele deveria recordar que, no seu país, a “servidão da gleba” foi abolida em Fevereiro de 1861, ou seja, na mesma altura em que a escravatura foi proibida nos Estados Unidos.

E qual era a diferença entre a servidão da gleba e a escravatura? Uma apenas: se, maioritariamente, os escravos eram negros, os servos eram camponeses russos. Os senhores russos eram donos absolutos da vida e da propriedade dos servos, podiam vendê-los e trocá-los como gado. Quem não acreditar, pode procurar na literatura clássica, no conto Mumu, de Ivan Turgueniev, por exemplo, ou em Almas Mortas, de Nikolai Gogol.

Vladimir Putin poderia recordar a acção de Joe Biden durante a “Primavera Árabe”, o fracasso da intervenção militar da NATO na Líbia, a crise no Iraque, no Afeganistão e na Síria. Mas não. Ele parece ter optado por se transformar no defensor das “minorias étnicas” nos Estados Unidos.

A invasão de países vizinhos a pretexto de defender as “minorias russófonas” ou o massacre de milhares de chechenos pelas tropas russas deveriam fazer pensar os afro-americanos, índios e não só.

Além do mais, os aliados escolhidos por Putin na Europa não são também conhecidos pelas suas “posições tolerantes” para com as minorias. No início da semana, Waldemar Heart, deputado do partido de extrema-direita “Alternativa para a Alemanha, visitou a Rússia e afirmou que os países ocidentais poderão vir a reconhecer a Crimeia como território russo se neles se realizar uma “mudança total das elites políticas”.

Como Vladimir Putin gosta muito de ditados, deixo-lhe aqui mais um: “Diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és”.

A reacção da imprensa e dos políticos russos às declarações de Biden é de completa histeria e a chamada a Moscovo do embaixador russo em Washington para consultas nada promete de bom. Putin desafia Biden para uma conversa televisiva em directo nos próximos dias, mas a Casa Branca ainda não reagiu.

Como se costuma dizer: “pagaria para ver esse debate”!