Bastou um vírus e a inevitabilidade de termos de conviver com ele, para que rapidamente boa parte da nossa sociedade tenha capitulado e desenvolvido pulsões totalitárias. Essa vontade de ir mais longe na compressão dos direitos, vendo nisso a solução para resolver o incerto, não é por estes dias apenas do Estado nem dos adoradores das fórmulas de Ordem. São vários os cidadãos, dos mais diversos quadrantes políticos, que rasgam as vestes em defesa de soluções securitárias, exigindo ao Estado sevícias e outro tipo de humilhações, convencidos que tal expiação patrocinará a eliminação completa do novo coronavírus da face do planeta e o regresso ao passado e à tão desejada vidinha.

Sempre soubemos que a luta pela segurança tende sempre a ser mais forte do que o amor à liberdade. Nada demais, até F. A. Hayek defendeu ser sensato em certas situações sacrificar temporariamente a liberdade de modo a garanti-la no futuro. Suportando-nos naquele conhecimento que foi vivido, consumado nesse saber da experiência feito, podemos afirmar hoje, sem dificuldade, que a segurança é um pressuposto para a liberdade. Enquanto não se dissiparem as memórias destes tempos que estamos a viver, será claro para nós que o exercício pleno da liberdade é uma consequência, uma decorrência, da segurança.

Confiar, porém, apenas no conhecimento empírico pode ser problemático. Pode bloquear uma sociedade e levá-la a acomodar-se face aos riscos, suspendendo o Futuro, na mesma linha do Velho do Restelo, que no Canto IV d’Os Lusíadas, revoltado e do alto da sua experiência, bramiu contra o incerto. É que para podermos, a longo prazo, ser os criadores do nosso destino, não podemos, no imediato, ser escravos das ideias que criamos. É esse o nosso dilema: há nesta pandemia um lado incerto, que resulta do desconhecimento da ameaça, que rapidamente afirmou um Tempo de Trevas, onde o medo da Morte – o permanente medo da Morte – abriu espaço a uma profunda perturbação e iminente derrocada de diversas estruturas políticas, sociais e económicas, que vai deixar marcas irreversíveis: por mais que tentemos sinalizar que “vai ficar tudo bem”, pensamento motivacional que subscrevo, há uma acelerada disrupção em curso que nos obriga a pensar mais além, em relação ao que nos espera, para lá das decisões à vista que são, em muitos casos, inevitáveis. Nestes tempos de disrupção, não basta apenas manter e proteger, é fundamental perspetivar o novo tempo que aí vem, sem nos amarrarmos excessivamente ao tempo que passou.

Se em épocas de bonomia e estabilidade já é árduo traçar caminhos, tal torna-se ainda mais complicado quando enfrentamos momentos de disrupção e medo. Os tempos que estamos a viver várias vezes me transportaram para memórias recentes. Há dez anos atrás – vivia Portugal uma outra crise paralisante, e eu paredes meias com o Museu que perpetua a obra magnífica de Vieira da Silva e do seu marido, Arpad Szenes – choquei com uma biografia escrita nos anos 80 por Agustina Bessa-Luís, “Longos dias têm cem anos”, onde a propósito da personagem ficcional e idealizada da pintora, a escritora partilha connosco um pensamento que se renova e reinventa de uma forma, diria, quase intemporal:

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Ainda hoje sei muito pouco de tudo, o que me causa embaraço quando vejo a tremenda bagagem de conhecimentos que têm as pessoas. Se ouvirmos tudo o que se diz nos autocarros, nas praias, nas repartições, ao fim do dia podíamos escrever uma enciclopédia em vinte volumes e até ter êxito com ela. Não há nada de mais aceitável do que a pequena sabedoria, os amores confessáveis e as histórias de doenças.

Nestas alturas, em que nos dividimos entre a clarividência de aceitar que sabemos muito pouco de tudo, e a tentação de impor linhas de ação a partir do nada, é fundamental que não esqueçamos que se uma ameaça nos pode paralisar, não viveremos melhor no futuro se prescindirmos daquilo que nos trouxe até aqui, evolução, progresso, bem-estar, construídos em liberdade. “Uma civilização complexa como a nossa baseia-se necessariamente no ajustamento do indivíduo a mudanças cuja causa e natureza ele não pode compreender”, escrevia Hayek. Se o futuro é incerto, pelo menos, saibamos confiar nas nossas convicções. São elas que nos devem guiar. A servidão não é o caminho.

Da minha parte, permaneço convicto que viver é um imperativo moral, e que assumir riscos continua a ser um elemento essencial da existência humana, até que a natureza derradeiramente me derrote. Entendo que a raiz do pânico que bloqueou várias sociedades – e não apenas a portuguesa – resultou da falta de resposta dos Estados, a quem cabia antecipar a pandemia e organizar a resposta dos sistemas de saúde, e do receio da sua própria sobrevivência. Não há nesta crise nenhuma falha de mercado, mas uma clara falha de Estado, cujas fragilidades a pandemia pôs a nu, sendo por isso importante aprender as lições certas que esta crise nos patrocina. Permaneço crítico do falso altruísmo que se fecha numa vaga ideia de “Bem Comum”, para promover um efetivo egoísmo que suprime as liberdades sem ponderar as consequências dos seus atos, sobretudo para os mais pobres. Considero que a integração global é um processo que deve ser valorizado, sendo as pulsões isolacionistas prejudiciais para todos.

É a partir destas convicções que defendo os novos caminhos. Mais do que discutir velhas ideologias, e falsas dicotomias entre “vida” e “economia”, precisamos saber como vamos fazer a gestão da incerteza, equilibrando as respostas de curto prazo com os impactos daí resultantes, a médio e longo prazos. Sendo mais exigentes com o destino dos nossos impostos, pondo em questão a alienação e adormecimento do Big State face às funções essenciais, discutindo, não apenas os desvios orçamentais, mas sobretudo a qualidade dos gastos públicos. Defendendo que o processo de integração global seja acompanhado de uma mais efetiva cooperação global, e de uma persistente defesa da promoção dos valores das democracias liberais, na consciência que o processo de mercado deu espaço a uma globalização que, sendo benéfica, não foi acompanhada de uma maior coordenação política, com as consequências visíveis. Pensando – seriamente e de mente aberta – como nos organizamos, enquanto sociedade, nas suas várias dimensões (acesso ao ensino, laboral, fiscal, de organização da família e previdência), para garantir que os benefícios da revolução digital e das novas formas de produção chegam a todos, em vez de funcionarem como incentivo para que os Estados não se reformem, canibalizando todos os ganhos de produtividade por via fiscal, e privilegiando negativamente as “empresas-Estado” e as suas emergentes teocracias.

É fundamental sair da bolha ideológica e das suas disputas vãs, sem sentido, das recriminações maniqueístas e de falsa moralidade sobre as opções disponíveis. O desafio, depois desta crise, passa por pensar qual é o papel do Mercado, e do Estado, nas nossas comunidades. Debate que há muito é o de sempre, mas que hoje se apresenta com pressupostos diferentes, merecendo de todos serenidade e abertura de espírito para minimizar os prejuízos e os impactos que as medidas de curto prazo, que tenham de ser tomadas, possam ter a médio e longo prazos, assumindo que o Futuro não pode ser adiado. Esse exercício de equilíbrio é fundamental, porque as decisões que tomarmos hoje, terão, pela positiva ou pela negativa, consequências no nosso Futuro, não apenas num Futuro longínquo, mas já amanhã. Longos dias têm cem anos, escreveu Agustina. Mas que, por esta vez, saibamos aprender com os erros, e começar, já amanhã, a construir o Futuro, honrando a memória daqueles que, com engenho e arte, nos ensinaram grandes lições, não nos deixando ofuscar pela espuma dos dias e pelas névoas do medo e do ressentimento:

Longos dias têm cem anos. Assim me diziam quando se tratava de protelar um assunto, de o fazer amadurecer na lânguida separação do inadiável. E os longos dias passavam, carregados de justo sentimento pelas coisas que devíamos fazer de maneira lesta e durável. Às vezes, não se faziam nunca. Outros planos, mudanças, resistências, vazios súbitos do coração, que é quem nos comanda o trabalho e a fantasia. Longos dias têm cem anos. Era uma admoestação e uma ironia para o preguiçoso inveterado que num século acha tempo adequado para os seus projetos e a combinação laboriosa que os acabe.