1 É um veto inconsequente a curto prazo mas é um veto político que a médio/longo prazo reforçará a posição do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. A maioria do PS bem pode aprovar novamente a mesma proposta do Programa “Mais Habitação” no Parlamento e forçar Marcelo a promulgar o pacote legislativo mas a força da razão irá impor-se até 2026 — ou antes.

Marcelo tem razão quando diz que a estratégia do Governo não é “suficientemente credível”. E tem razão em primeiro lugar por algo que o Presidente não refere na sua mensagem ao Parlamento mas que é uma evidência: a ausência de credibilidade de António Costa nesta matéria tem um passado bastante sólido.

Desde 2015 que o Governo de António Costa não consegue encontrar soluções para o drama social crescente nos mercados de compra e venda e de arrendamento habitacional. Durante esse longo período de oito anos, não há um só programa público que tenha conseguido alcançar os objetivos preconizados.

2 Os resultados estão entre o zero redondo e o medíocre, como já tinha constatado aqui em fevereiro de 2023. De lá para cá, pouco ou nada mudou em termos de resultados, além dos inúmeros anúncios e ações de propaganda da ministra Marina Gonçalves.

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Vejamos:

  • O programa 1.º Direito tem o objetivo de apoiar famílias carenciadas sem capacidade económica para pagar um arrendamento. Foram identificadas 53 mil famílias. Qual o resultado alcançado até janeiro de 2023? Apenas 263 famílias foram apoiadas. Ou seja, uma taxa de execução de cerca de 0,4%. Em maio de 2023, esse valor subiu para uns irrisórios 4%.
  • O Governo estabeleceu uma meta simples em 2017 e em 2019: 20% de todos os contratos de arrendamentos deviam ser abrangidos pelo programa Arrendamento Acessível até ao final de 2020. Em dezembro de 2022, apenas tinham sido apoiados 0,4% da totalidade do mercado de arrendamento. Ou seja, apenas 950 do total de 252.449 contratos, segundo o Público.
  • E como está a taxa de execução dos cerca de 2,7 mil milhões de euros do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência canalizados para a habitação? Veja-se o caso da habitação social. Está previsto o investimento de 1,8 mil milhões de euros para construir e reabilitar 26 mil fogos até 2026, sendo certo que até ao próximo mês deveriam ser disponibilizados 3.000 fogos pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). Várias notícias referem que os fogos estão “contratualizados” (ver aqui e aqui) mas nada garante que esse número exato de fogos venha a ser disponibilizado dentro do prazo previsto ou que a meta para 2026 seja cumprida. Bem pelo contrário.
  • Até os estudantes, numa matéria que já responsabiliza o Ministério do Ensino Superior, têm abundantes razões de queixa do Governo. No âmbito do Plano de Alojamento para o Ensino Superior (que pode ser consultado aqui), o Ministério do Ensino Superior prometeu em 2018 a criação de mais “12 mil novas camas de alojamento” para o período entre 2019 e 2022. Sabe o caro leitor o que aconteceu no final de 2022? Portugal tinha exatamente as mesmas 15 mil camas que tinha em 2018, como o jornal Polígrafo constatou, e António Costa passou a prometer “26 mil novas camas” até 2026. Se não cumpriu entre 2019 e 2022 por que razão cumprirá em 2026?
  • A incompetência do Governo é tal, que nem a famosa transformação da antiga sede do Ministério da Educação em residência universitária foi sequer concluída na data prevista: 2023. Porquê? Por que o projeto não respeitava a área mínima para cada quarto imposta pelas regras urbanísticas da Câmara de Lisboa. Assim, em vez das 603 camas inicialmente previstas, só deverão ser construídas 450 camas. E até 2026.

Portanto, e além dos argumentos relacionadas com o programa “Mais Habitação” (já lá iremos), a incompetência do Governo Costa em matéria de políticas públicas de habitação é clara e absoluta.

Como diz Vítor Reis, ex-presidente do IHRU, até o Governo de Passos Coelho em tempo de emergência financeira fez mais em apenas três anos, ao disponibilizar mais de 3000 habitações em 180 municípios em sistema de arrendamento acessível (as rendas estavam 50% abaixo do preço praticado pelo mercado), do que o Governo Costa em oito anos e fora do espartilho da troika.

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Há um ponto, contudo, em que os socialistas têm razão: não há uma bala de prata ou uma poção mágica de leis para resolver de forma imediata o problema complexo da habitação. Este é um tema comum a algumas cidades europeias, nomeadamente no que diz respeito à subida dos preços no mercado de arrendamento.

Não só a subida dos juros decidida pelo Banco Central Europeu tem contribuído para um acréscimo muito significativo dos custos dos contratos de crédito de habitação (impactos esses que são diferenciados, consoante o poder de compra de cada país), como também tem provocado uma transferência dos cidadãos para o mercado de arrendamento — o que contribuiu para um aumento dos preços em cidades como Berlim, Paris e Londres. Basta ler os dados deste artigo do Financial Times (FT) para concluir isso mesmo.

O que faz sentido. Se a queda da Euribor entre 2011 e 2015 provocou um aumento da procura no mercado de compra e venda, a subida das taxas de juro promove uma transferência para o arrendamento.

Há mais causas que explicam a subida dos preços — o problema é efetivamente complexo. E não, a procura dos estrangeiros não explica tudo em Portugal.

É verdade que Lisboa é a capital europeia em que o valor das rendas mais subiu desde dezembro de 2021. Mas tal subida foi claramente mais acentuada quando o pacote “Mais Habitação” foi apresentado pelo Governo Costa, com medidas radicais como o arrendamento coercivo, a limitação a 2% da atualização dos preços (quando a taxa de inflação está muito acima desse valor) e a manutenção ad aeternum dos contratos de rendas antigas.

Os preços das rendas dispararam desde o início de 2023 e a discussão dessas medidas levou a receios fundados no mercado. A confiança dos proprietários foi posta em causa, o que levou à saída legítima de muitas casas do mercado de arrendamento, e a oferta (que já era muito inferior à procura) ficou ainda mais reduzida, pressionando a subida dos preços, como o FT também refere no artigo acima citado.

A subida dos preços no mercado de arrendamento é calculada pelo FT em cerca de 14% desde o início do ano.

É uma conclusão clássica das políticas socialistas: quando se tenta interferir nos mecanismos naturais dos mercados em nome de alegados bons princípios (decidindo administrativamente os preços e limitando toda e qualquer ação livre de um dos players do mercado — os proprietários, no caso), o que se consegue é a escassez.

Assim, em vez de “Mais Habitação”, temos “Menos Habitação”.

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Basta ver os resultados de um inquérito aos sócios da Associação Lisbonense de Proprietários, realizado entre 26 de abril e 5 de maio, para reforçarmos essa conclusão da escassez provocada pela falta de confiança dos investidores.

Nesse inquérito, 20% dos proprietários asseguraram que tinham feito aumentos extraordinários para compensar o futuro limite de 2% na atualização das rendas. E outros 20% fugiram do mercado de arrendamento, vendendo os respetivos imóveis.

Mas os reflexos negativos não se ficaram pelo arrendamento. Também no mercado de compra e venda a oferta diminuiu porque estamos a construir cada vez menos.

Ou seja, se já tínhamos uma queda de 85% entre os fogos construídos entre 2002 e os fogos concluídos em 2020 (basta ver os dados compilados por Carlos Guimarães Pinto e Duarte Levy neste artigo no Eco), as contas nacionais do 1.º trimestre de 2023 apontaram mesmo para uma contração de 6,5% em termos homólogos. Isto é, construímos menos do que no 1.ª trimestre de 2022, o que reduz ainda mais a oferta já por si minúscula face às necessidades.

Podemos argumentar que a subida dos juros poderá ter levado o mercado a antecipar uma redução da procura, podemos também dizer que o aumento dos custos de construção fez com que muitos concursos do PRR para a habitação ficassem vazios devido aos valores base irrealistas — tudo isso pode estar correto.

Contudo, não podemos ignorar toda a incerteza e desconfiança dos investidores provocada pelo radicalismo do programa “Mais Habitação”.

Um exemplo paradigmático da ausência de confiança dos privados no Estado tem precisamente a ver com ausência de resultados de um programa-estrela das políticas públicas de habitação do Governo Costa: o programa de Arrendamento Acessível. Por que razão a taxa de execução, como vimos acima, era de apenas 0,4% no final de 2022 — e ao fim de 3 anos de execução? Porque o programa dependia da adesão dos proprietários (aqueles que são vistos pelo PS e pela extrema-esquerda como os maus da fita).

Ora, como a confiança dos privados no Estado em termos de políticas de habitação está abaixo de zero, não houve adesão, obviamente. Daí que o Governo Costa tenha decidido afetar imóveis públicos que estavam no mercado para venda ao programa Arrendamento Acessível. Com que resultados? Sabe-se apenas que o Estado perdeu receita mas ainda não há dados sobre os fogos disponibilizados ao abrigo desse programa.

5Há razões históricas para que os proprietários não confiem no Estado no que diz respeito às políticas de habitação. E o Governo Costa só reforçou esse histórico.

Como podemos considerar o Estado uma pessoa de bem nesta matéria se desde a I República está constantemente a intervir no mercado de arrendamento, congelando preços, impondo aos proprietários o ónus de subsidiar na prática os inquilinos e de não poder dispor livremente dos seus bens?

Como pode o Estado ser considerado uma pessoa de bem quando em 2012 liberalizou o mercado de arrendamento (protegendo os mais velhos e carenciados), para regressar aos preços controlados em 2015 com a promessa de que as rendas antigas iriam acabar passados vários anos e agora o mesmo Estado volta a mudar tudo, impondo os contratos de rendas antigas como vitalícios?

E como pode o mesmo Estado ser de confiança quando incentivou muitas famílias de classe média a investirem no Alojamento Local (AL), regulando e legalizando muitos arrendamentos turísticos clandestinos que não pagavam impostos, e agora diz (sem qualquer estudo que sustente essa afirmação) que o AL é uma das causas da crise habitacional em todo o país, quando as próprias autarquias de Lisboa e do Porto circunscrevem o problema a algumas freguesias dos respetivos centros urbanos?

6 É por tudo isto que Marcelo Rebelo de Sousa fez bem em censurar o Governo por não ter procurado um consenso alargado com o PSD e com os diversos operadores do mercado imobiliário. Marcelo tem razão: a maioria absoluta do PS está isolada. É um pequeno paradoxo mas é verdadeiro.

Não existe um Governo de diálogo. Existe uma maioria absoluta isolada e incompetente com soluções ineficazes para o drama da habitação. Esta é a mensagem política do veto de Marcelo.

Ninguém está satisfeito com este pacote “Mais Habitação” e só os socialistas mais radicais acreditam que conseguirá resolver alguma coisa. Nem os proprietários (os inimigos do costume da esquerda), nem as empresas de construção e muito menos os inquilinos acreditam neste pacote de medidas.

Por isso mesmo, o Presidente da República viu aqui uma oportunidade de ouro para isolar o Governo, responsabilizando-o de forma absoluta pelo fracasso que este pacote “Mais Habitação” certamente representará.

Se lermos com atenção a carta enviada ao Parlamento, podemos considerar que os argumentos de Marcelo poderiam ter sido mais fortes. Em vez de se manifestar contra o arrendamento coercivo ou contra o combate ao AL, o Presidente preferiu avaliar a relação entre as medidas e os objetivos do Governo para concluir que as mesmas eram ineficazes.

Como assinalei aqui em março, esperava que o Presidente da República assumisse uma posição de defesa de valores relevantes da nossa Constituição, como a defesa do direito de propriedade.

Marcelo resolveu ir por outro caminho mas assumiu uma divergência profunda com o Governo de António Costa, ao mesmo tempo que o desgasta politicamente de forma clara.

Na prática, Marcelo concentrou-se em dois pontos — que cumpriu de forma categórica:

  • fez um passe de número 10 para que a oposição (leia-se o PSD) transforme o tema da habitação num dos seus principais instrumentos de escrutínio do Governo. Veremos se Luís Montenegro aproveita a deixa e marca golos porque há muito para escrutinar;
  • E transformou o pacote “Mais Habitação” num fator relevante da sua avaliação enquanto Presidente da República sobre as condições políticas de António Costa para governar até ao final do seu mandato.

É um pouco irrelevante neste momento determinar se o aumento do escrutínio de Marcelo Rebelo de Sousa se deve ao caso Galamba. Certo é que o Presidente da República parece já ter concluído que a maioria absoluta do PS não é uma solução credível para assegurar o futuro dos portugueses. Daí o seu descontentamento crescente.

O falhanço que o Presidente prevê para o programa “Habitação Mais” é apenas um dos muitos pregos no caixão da maioria absoluta do PS que Marcelo terá o maior prazer em martelar com convicção.

Veremos se mais pregos serão mostrados no próximo Conselho de Estado de 5 de setembro.