“A função do Presidente da República é ajudar o Governo a não se pôr a jeito (…) queremos que haja uma legislatura que seja cumprida e queremos que seja uma maioria não apenas de nome, mas de obra (…) [Que sejam] anos de uma maioria absoluta forte e não de maioria uma absoluta a dissolver-se, mesmo sem dissolução, em dissolução interna”

Marcelo Rebelo de Sousa, 31 de janeiro de 2023

1 Desde a última vez que escrevi um artigo de opinião sobre o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, muita coisa mudou. Na altura, a 5 de dezembro de 2022, perguntava “Onde está Marcelo quando o país mais precisa de um Presidente da República?” porque perante o início daquele ciclo verdadeiramente penoso do Governo Costa, que se iniciou com a demissão de Miguel Alves e a publicação do meu livro “O Governador”, o Presidente da República nada dizia.

Estranhamente, ou talvez não, estava desaparecido em combate.

Ágil, como sempre (e como só os camaleões políticos conseguem ser), depressa se adaptou à nova realidade dos sucessivos casos que minavam (e minam) a credibilidade do Governo.

Tudo mudou em janeiro e logo com a mensagem de Ano Novo. De um Presidente que sempre estendeu a passadeira vermelha a praticamente tudo o que o Governo fazia, Marcelo passou num ápice a coveiro do Executivo do PS, quase assinando a certidão de óbito de uma maioria absoluta de um só partido, ao falar de uma possível “dissolução interna” da maioria e ao colocar a hipótese de uma derrota dos socialistas nas europeias representar a morte política de tal maioria absoluta.

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Apesar dos ministros Fernando Medina e João Cravinho continuarem sob grande pressão político, a sucessão de casos no Governo estancou e o contexto político acalmou um pouco em fevereiro. E Marcelo voltou quase ao normal. Ou seja, não voltou a estender a passadeira vermelha mas acompanhou (como não?) o período de acalmia. Como génio assumido da tática, Marcelo acompanha sempre a onda.

2 Vem isto a propósito do facto político da semana, o suposto regresso de Passos Coelho à política para voltar a candidatar a líder do PSD e a primeiro-ministro, que foi praticamente criado por Marcelo Rebelo de Sousa. Ninguém me contou. Estive presente na sessão em que Marcelo e Passos participaram a convite do Senado (ver ponto 8) e vi com os meus próprios olhos o que sucedeu.

Em primeiro lugar, como José Manuel Fernandes já explicou no seu Macroscópio, Passos Coelho não disse nada de novo face a outras ocasiões. Não só nunca o ouviram dizer que a sua carreira política tinha terminado, como também na sessão do Senado ninguém o ouviu dizer que iria regressar à política.

É verdade que a famosa frase do “horizonte da minha vida política e pessoal” foi dita. Não há dúvida sobre isso.

Mas foi dita num contexto que não pode ser visto como se fosse um regresso à vida política. O contexto tinha única e exclusivamente a ver com a possibilidade de criar um regime federalista na União Europeia (os tais Estados Unidos da Europa, com um Governo e um Parlamento) ou, no mínimo, aprofundar a União Económica com um orçamento e uma dívida comum.

“Não a teremos [a tal união orçamental] nos anos mais próximos e não o antecipo no horizonte da minha vida política e pessoal”, disse Passos Coelho.

A partir disto e só disto, e sob a batuta direta de Marcelo Rebelo de Sousa, criou-se todo um contexto político que se resume numa frase simples: “O Passos vai regressar! E a São Bento!”

“Marquem o dia no calendário”, ajudou Marcelo à festa, fazendo questão de se referir na sua intervenção a seguir ao jantar ao “primeiro-ministro Passos Coelho”.

3 Vou ser o mais direto possível: Marcelo Rebelo de Sousa quer ‘queimar’ na praça pública o nome de Pedro Passos Coelho. Daí que tenha criado esse alegado facto político. E não é a primeira vez que o faz.

Já o tinha feito numa cerimónia das comemorações do centenário de Agustina Bessa Luís. Completamente a despropósito, e aproveitando a presença de Passos Coelho, Marcelo resolveu proclamar que sendo o ex-primeiro-ministro tão novo, “o país pode esperar, deve esperar muito ainda do seu contributo no futuro”.

Na altura, Marcelo estava a viver o pior momento dos seus dois mandatos, ao ser duramente censurado (e com fundamento) por declarações desastrosas sobre as vítimas de pedofilia na Igreja Católica. E usou despudoramente o nome de Passos para desviar as atenções.

E agora? Qual é a sua motivação? A personalidade política de Marcelo Rebelo de Sousa indicia claramente que a motivação até pode ser completamente gratuita. O gozo do jogo político, o gozo de por toda a gente a falar de algo que ele criou. O gozo, enfim, de ver a política como um jogo infantil.

Contudo, tudo aparenta para que exista uma motivação política real: o objetivo de ‘queimar’ ou de dificultar o nome de Passos Coelho como uma solução para o futuro do PSD.

A prova disso foi o segundo ato do número de circo de Marcelo Rebelo de Sousa, 48 horas após o jantar do Senado, ao chocar (numa coincidência extraordinariamente conveniente) com Luís Montenegro na Bolsa de Turismo de Lisboa para o apresentar à ministra do Turismo do Brasil como o “futuro primeiro-ministro de Portugal”.

E quem é que beneficia com toda esta agitação no centro-direita? Obviamente, António Costa. Enquanto se fala sobre intrigas presidenciais, não se fala sobre os problemas do Governo e do PS.

4 Há um lado quase trágico que vai ficar para a história como a imagem de marca deste ciclo político que se iniciou com a chegada de António Costa ao poder em novembro 2015 e a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa em janeiro de 2016.

Somos liderados por duas pessoas (Marcelo e Costa) que se julgam especiais, que têm um sentimento de pertença a uma casta — a uma casta política que está acima do comum dos mortais e que encara a prestação de contas como um jogo tático que visa única e exclusivamente ganhar e manter o poder.

Tudo pelo poder, nada pelo país — parece ser o lema destes dois homens.

Não é só António Costa que não tem uma visão para o país. Também Marcelo Rebelo de Sousa não tem qualquer ideia de um desígnio para a nossa comunidade. É verdade que no nosso sistema constitucional não compete ao Presidente da República governar. Mas convém ter uma ideia de que país defende.

Ora, além do seu fervoroso catolicismo (que o fez meter a pata na poça no muito sensível tema dos abusos sexuais na Igreja), o seu verdadeiro sentimento de serviço público (que o tem) ou da sua abnegação pelo voluntariado e pela defesa dos mais pobres (dá, sempre que pode, visibilidade ao tema dos sem-abrigo), o que defende mais Marcelo?

É difícil de perceber porque a tática e os jogos de poder sobrepõem-se a tudo.

5 Em vez de estar preocupado em criar instabilidade no PSD, colocando a liderança de Luís Montenegro em sobressalto desnecessário, em vez de estar tão obcecado com Pedro Passos Coelho (repito, só para queimar o seu nome para o futuro), o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa deveria ter outras prioridades.

O PSD de Luís Montenegro está a fazer o seu caminho. Tem sido muito mais atuante e escrutinador do que o seu antecessor Rui Rio, tem subido nas sondagens e, pela primeira vez desde 2017 e fora de períodos eleitorais, o PSD ultrapassou o PS.

É verdade que o PS desceu muito e o PSD não está a conseguir convencer muitos eleitores que ficaram insatisfeitos com os socialistas, é verdade que Montenegro tem cometido vários erros (a ambiguidade face ao Chega, o referendo da eutanásia, entre outros). Mas o primeiro momento de uma avaliação mais consistente serão as eleições europeias de 2024. Não é agora.

6 E quais deveriam ser as prioridades de Marcelo? Desde já, a maior dessas prioridades no curto prazo devia ser só uma: a programa Habitação Mais e algumas das suas medidas mais extremistas, como o arrendamento coercivo — que até preocupa o PS mas sobre o qual o Presidente da República tem estado calado.

Parece que ainda está à espera de abrir o melão jurídico — ou seja, está à espera do final da discussão pública (sobre um power point) e a apresentação e aprovação dos respetivos projetos-lei em Conselho de Ministros. Mas se há Presidente que nunca se escondeu atrás dos formalismos, esse Presidente é obviamente Marcelo Rebelo de Sousa que fala sobre tudo e sobre nada.

O Presidente da República sabe perfeitamente que as ideias do Governo são uma impossibilidade prática mas também são maior ataque à propriedade privada desde o 25 de abril. E representam um escancarar de portas claro à ocupação ilegal de casas potenciada por uma nova geração de okupas e por um aumento do desemprego que já começa a ser visível.

Do que está à espera Marcelo para se pronunciar sobre:

  • sobre a chantagem efetiva que o Estado vai fazer sobre os proprietários de imóveis, dando-lhes um prazo de 10 dias para responder à autarquia que queira arrendar coercivamente o seu imóvel e o prazo de 90 dias para efetivamente arrendarem à força a sua casa?
  • É quase como se o Estado fosse um daqueles assaltantes à moda antiga com uma meia na cabeça e uma pistola na mão a gritar na cara do proprietário: “ou arrenda a sua casa ou passa as chaves?!”. Marcelo Rebelo de Sousa concorda com estas práticas?
  • Uma parte importante do PS é contra política de colaboração premiada que foi proposta pela ex-ministra Francisca Van Dunem, como se viu pelos rasgar de vestes constitucionais aquando da discussão da proposta. Mas já aprova que os arrendatários sejam os bufos do Fisco para apanhar os malandros do senhorios. Portanto, o Estado impede que os senhorios sigam o preço de mercado, ocupa-lhe a casa, restringe o uso de alojamento local e ainda promove ativamente uma política de delação por parte dos inquilinos. O Presidente Marcelo está de acordo?
  • O Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias não fazem puto ideia dos imóveis que detém e do respetivo estado, como noticiou o Expresso. A inventariação completa dos bens imóveis do domínio público está a ser feita há 15 anos mas ainda não resultados concretos. O Presidente Marcelo não quer criar um facto político com esta matéria que faça o Governo agir antes de invadir de forma venezuelana o património privado?

7 Entre muitas outras perguntas. O programa Habitação Mais merece a maior atenção do Presidente Marcelo, até porque, repete-se, não só não vai resolver nada, como vai agravar o problema estrutural da habitação.

Aliás, através da sua magistratura de influência, Marcelo Rebelo de Sousa até pode dar boas ideias que podem ajudar a resolver o principal problema: aumentar a oferta de casas no mercado de compra e venda e arrendamento. A saber:

  • Dar isenção de mais-valias apenas para imóveis de habitação própria e permanente é uma medida inútil. Quem é que vai vender a sua própria casa? E vai viver para onde? Essa medida só será eficiente se for alargada para as habitações secundárias que tenham contratos de crédito associados;
  • O valor para os contratos de crédito abrangidos é de apenas de 200 mil euros. Se o principal problema do mercado de compra e venda está concentrado em Lisboa e Porto, isso faz com que uma aquele valor deixe muitos imóveis de classe média de fora. O valor deve ser aumentado tendo em conta a realidade dos valores de mercado dos últimos 10/15 anos em Lisboa e Porto. Só assim será realmente efetiva
  • Os contratos de arrendamento anteriores a 1990 não podem ficar congelados de forma definitiva, como a ministra da Habitação já anunciou. Se o Governo quer criar uma relação de confiança com os senhorios, esses contratos têm de continuar a aproximar-se dos valores de mercado, respeitando toda a proteção social dos maiores de 65 anos que a lei já garante.
  • Os programas de visto gold não devem ser pura e simplesmente extintos. Devem manter-se para investimentos turísticos, industriais ou agrícolas que criem emprego e tragam investimento para a economia portuguesa. O que deve ser extinto são isenções fiscais para reformados ou até mesmo para nómadas digitais.

Estas, sim, correspondem a prioridades de um Presidente da República que deve representar todos os portugueses mas que tem uma origem política que não pode ignorar.

8 Assisti com muito prazer à sessão de aniversário do Senado – um grupo de mais de 200 jovens liderados por António Capela que muito prezo. Não é comum ver-se a capacidade de organização e disciplina de jovens que assumem, de forma transparente, as suas preferências ideológicas e que querem entrar na política para executarem as suas ideias.

É de aplaudir essa vontade cívica de querer participar na construção de um país melhor, com mais oportunidades para todos e onde a meritocracia tem um papel crucial.

Tão importante como isso é a atenção que dão às matérias éticas e deontológicas, assim como ao combate à corrupção. Foram sobre estas matérias que fui orador em 2022, a propósito do lançamento do meu segundo livro “45 Anos de Combate à Corrupção” numa sessão da qual guardo boa memória. Fiquei satisfeito por ver o líder do Senado evidenciar a importância destas matérias no seu discurso do 10.º aniversário.

Como o Presidente Marcelo fez questão enfatizar, que mais Senados floresçam pelo país e que venham mais 10 anos para este grupo tão dinâmico, como interessante.