“Não há nenhum um dado objetivo que deva levar o inquérito criminal para o Presidente da República”, é assim, de forma taxativa, que o advogado Paulo Saragoça da Matta analisa no programa “Justíça Cega” da Rádio Observador os indícios contra Marcelo Rebelo de Sousa de alegado favorecimento no caso das gémeas luso-brasileiras.

Caso Gémeas. “Em vez de afetos devemos ter regras”

“Um inquérito criminal é a busca de indícios e a respectiva evidência da prática de um crime. Se nós entendêssemos que num crime deste tipo — que parece ser um crime de tráfico de influências mas que até pode ser outro crime — se nós direcionássemos o inquérito contra toda e qualquer pessoa que está numa cadeia de conversa ou contacto por onde pode passar o alegado tráfico, então, em todos os processos que investigam tráfico de influências, nós teríamos 10, 8, 15, 7, 16 visados”, explica Saragoça da Matta.

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O penalista desvaloriza assim o facto de o processo, que fez com que as duas crianças luso-brasileiras sofrem de atrofia muscular espinhal tenham sido tratadas em 2019 no Hospital de Santa Maria, tenha começado no Palácio de Belém com um email de Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República.

Para Saragoça da Matta, a análise das suspeitas de alegado favorecimento devem “começar por baixo”. “Isso tem sido descurado. Quem tem o poder de decisão são o Hospital de Santa Maria e o Infarmed. E quem tem o poder hierárquico de influenciar a decisão é o Ministério da Saúde. Para quê direcionar a investigação para o Presidente da República quando há tanta coisa para investigar antes?“, explica Saragoça da Matta.

O problema da “maldição dos excessos de recursos”

O “Justiça Cega” contou também com a presença de André Corrêa de Almeida, professor da Columbia University e Presidente Fundador da Associação All4Integrity, que analisou a crise do regime político após este caso das gémeas mas também da Operação Influencer que vista o primeiro-ministro António Costa, o seu melhor amigo Diogo Lacerda Machado e o ex-chefe de gabinete Vítor Escária.

“Portugal não é rico em diamantes ou em petróleo mas tem desde meados dos anos 80 acessos aos fundos europeus — que já teve vários quadros comunitários de apoio com várias dezenas de milhares de milhões de euros.  A isto a literatura [académica] chama de ‘resource curse’. Isto é, a maldição do excesso de recursos que não resultam numa produção de riqueza interna mas que resulta de grandes intervenções do exterior que acabam depois de fazer o quê? Beneficiar uma pequena elite”, afirma André Corrêa de Almeida.

“Também sabemos da ciência política e da economia do desenvolvimento, que os países em desenvolvimento, são capturados muitas vezes por esses recursos especiais. E é neste emaranhado de relações entre o setor privado e o setor político que chegamos onde chegamos. Diria que há este problema sistémico e, com toda a franqueza, só vejo uma solução política para sairmos daqui que passa necessariamente pelos poderes do Presidente da República no atual quadro de regime semi-presidencialista”, diz o académico.

Quanto ao envolvimento de Marcelo Rebelo de Sousa no caso das gémeas, o professor da Universidade de Columbia rejeita que exista uma alegada violação da lei mas diz que houve “uma impreparação”.

“Há aqui uma questão que é: o Presidente devia ter dado o mesmo seguimento que dá a todos os pedidos que lhe chegam, sendo o filho ou não? Ou deviam existir mecanismos que prevenissem esses conflitos de interesses? Mesmo que não seja essa a intenção do senhor Presidente, o facto de ter enviado o processo para o Governo — que é um problema de difícil de gestão — coloca-o numa posição de autoridade. Vindo o processo do filho —  mesmo, repito, não sendo essa a intenção do Presidente da República — isso pode causar no recetor da mensagem uma pressão”, afirma André Corrêa de Almeida.

Oiça aqui a versão integral do podcast do “Justiça Cega”