Já todos vimos esta cena no cinema. Passa-se num restaurante, ou num avião, ou num lobby de hotel, onde uma pessoa tem um AVC, um ataque epiléptico ou engasga-se com um rebuçado. Nisto, alguém grita: “Há algum médico aqui?” e aparece um doutor à paisana para salvar o dia. Num filme americano é um cliché. Num filme português é ficção científica. Em Portugal não há médicos de folga. Por que raio haveria um médico de estar num restaurante ou numa avião? Estão todos a trabalhar, normalmente no 4º ou 5º turno seguido. Mais depressa alguém responde a: “Há algum extraterrestre aqui?”

No caso inverosímil de haver por ali um médico, só se for maluquinho é que o admite em público. Nunca se sabe se não está alguém do Governo por perto. Rapidamente o arrebanha e a leva à força para fazer um banco de urgências.

Se fizessem um remake da Canção de Lisboa, desta vez a personagem do Vasco Santana não seria o estudante boémio e cábula a fingir às tias que já é médico. Para ser credível, tinha de ser um já formado obstetra a fazer de conta que é um fadista estroina. A esconder o diploma para não envergonhar a família. As tias a perguntarem: “Ó Vasquinho, é impressão minha ou fizeste um curativo àquela moça?” E diz o Vasquinho: “Eu? Que ideia, Titi! Estava a dizer um galanteio e a prometer-lhe uma serenata”. “Ah!”, diz a velha. “Assim, sim! Só me faltava que estivesses a praticar medicina. Pior, só se soubesses o que é o esternocleidomastóideo”.

Outrora, ser médico era uma razão de orgulho. As pessoas admiravam médicos, as mães babavam-se pelo filhos médicos, a sociedade respeitava os médicos. Era uma profissão prestigiante. Só que em Portugal perdeu o encanto. A crer no que o Governo diz, são uma espécie de escravos egoístas e mal-agradecidos. Abusam da educação providenciada à borla pelo Estado e depois recusam-se a retribuir através de turnos de 72 horas sem pausa para ir à casa de banho. O que é de uma mesquinhez ainda mais repugnante, se pensarmos que são profissionais que conseguem algaliar-se a eles próprios. Ninguém quer ir na rua e ouvir sussurrar nas costas: “Olha a mãe do ingrato Dr. Saraiva! Parece que o madraço chega a ir dormir a casa duas ou três vezes por semana”.

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Quem oiça o Ministro da Saúde, ou os deputados do PS que pressurosamente o inquirem na Assembleia da República, percebe que, para o Governo, a ganância dos médicos é tanta que é como se a saúde em Portugal tivesse regredido séculos. Antes, a medicina era feita com sanguessugas; agora, é feita por sanguessugas. Ou seja, o Ministério da Saúde acusa os médicos de não mudarem de posição, insinuando que mudaram de preposição. Na Idade Média, os médicos acumulavam como barbeiros. Agora é a mesma coisa: o Governo acha que os médicos portugueses levam couro e cabelo. O mundo tem os Médicos Sem Fronteiras, nós temos os Médicos Sem Limites.

O problema é que a nova geração de médicos cresceu a ver Grey’s Anatomy e não estava preparada para a entrada no mundo profissional. Acham que a vida de médico é só diversão, cheia de sexo com colegas. É o problema das obras de ficção. São muito fantasiosas. Não é que falte sexo na vida de um médico português. Há e com fartura. É raro o dia que acaba sem que um clínico tenha a sensação de ter sido abusado no trabalho. Só não é por um colega, é por um ex-colega. Agora Ministro.

É uma pena que os médicos não se contentem em trabalhar num SNS cujo orçamento é hoje 72% maior do que em 2015. Não se percebe a má vontade. A não ser – é uma hipótese – que o cepticismo advenha do conhecimento científico próprio da profissão. Um médico olha para uma massa que cresce 72% em 8 anos sem qualquer impacto na saúde, e sabe que é um furúnculo. Este orçamento não é para ser festejado, é para ser lancetado.