Resisti, juro que resisti a abordar este assunto. A enxurrada de comentários e notícias sobre ele fez com que me parecesse inútil, e até maçador, fazê-lo. Mas, aqui chegados, não posso continuar a ignorar o debate sobre a “pós-verdade”.
E não o posso ignorar por causa do efeito de bola de neve do sucesso da “mentira que é verdade”: à medida que novos acontecimentos comprovam a crescente aceitação por parte do público dos apelos à emoção e aos preconceitos, os factos e a realidade tornam-se cada vez mais irrelevantes e descartáveis. O que me interessa a mim a verdade, se aquilo que me propõem é muito mais interessante, sedutor e irresistível?
Ao escolher a “pós-verdade” (post-truth) como palavra do ano 2016 em Novembro último, os dicionários Oxford resumiram-na assim: “uma palavra definida como ‘relacionada com ou denotando circunstâncias nas quais os factos objectivos têm menos influência sobre a opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais”.
É simples: os cidadãos preferem acreditar – e votar – em pessoas ou promessas baseadas em conceitos ou factos que gostariam que fossem verdade, mesmo que o não sejam. E acreditam – e votam – nelas, seja porque isso já faz parte das suas convicções, seja porque se deixam convencer pela emoção.
Será mesmo assim? Estamos a caminho de um Mundo em que a verdade se torne despicienda? Em que, mais do que números, factos, acontecimentos reais, conte a emoção que confirma preferências ou manipula sentimentos, despoletando sérias consequências (essas sim, reais e objectivas)? Ainda mais: será que a “pós-verdade” significa que os cidadãos acreditam mesmo naquilo que lhes é dito ou preferem optar por ela em detrimento do que sabem, quando o sabem, ser verdade? Esta é a questão decisiva e a resposta que lhe dermos tem implicações sérias.
Vejamos dois exemplos recentes. Na verdade (o que é isso?) os dois tornaram o conceito, e a palavra, celebridades no ano transacto: o Brexit e a eleição de Donald Trump.
No primeiro caso, a emoção (presente na campanha dos dois lados) dominou o referendo e levou os britânicos a votar pela saída da União Europeia. Argumentos como a recuperação da soberania, o que o país paga para os cofres europeus ou os efeitos nefastos para a economia britânica da sua pertença europeia são insustentáveis face à realidade: a soberania nunca foi perdida, o país paga para os cofres europeus menos do que o decorrente dos benefícios do mercado interno (que aliás os britânicos não negam) e a economia está em alta, estando dentro da União. E contudo, o Brexit triunfou.
Já quanto a Trump, toda a campanha se baseou num apelo emocional, com uma forte dose de demagogia e dezenas de afirmações factualmente erradas. O agora Presidente americano fez centenas de promessas (alguns observadores contaram mais de 600), muitas das quais sem qualquer exequibilidade, outras de mera retórica. E contudo, Trump triunfou.
Encaramos, neste ano de 2017, uma série de eventos decisivos. Eleições nalguns países europeus, como a Holanda, a França e a Alemanha, podem determinar o futuro da própria União Europeia, com seriíssimas consequências para a Europa e para o Mundo. E, num tempo de “pós-verdade”, resta-nos saber se, também nesses casos, a “pós-verdade” triunfará.
Mais ainda: se vale a pena continuar a tentar afirmar os factos, e a sua verdade, sabendo que, porventura, eles não têm muita importância, porque as pessoas preferem ser enganadas, desde que o engano as conforte nas suas pré-existentes convicções; ou será porque o apelo enganador é suficientemente forte, atraente e atractivo?
Circulam pelas redes sociais, entre notícias importantes e factos verdadeiros, milhares de informações inventadas ou teses manipuladas, ao serviço dos interesses mais variados. Alguns não passam de brincadeiras de “hackers” talentosos e com sentido de humor. Muitas tornam-se virais. A maior parte das pessoas, como é compreensível, não se dá ao trabalho de verificar a veracidade das informações que recebem, identificando as fontes e aferindo da sua verosimilhança. Esse era o trabalho, antigo, da comunicação social; mas a comunicação social, também, cada vez mais, se alimenta dessas fontes e é, por isso, vítima de si própria e da nova realidade mediática e digital.
A ideia subjacente à “pós-verdade”, aliás, não é nova. Há mais de onze anos, Stephen Colbert, apresentador do “The Colbert Report”, inventou a palavra “truthiness”, significando “a qualidade de preferir conceitos ou factos que desejamos que sejam verdadeiros, em vez de conceitos e factos conhecidos como verdadeiros”. A Internet acelerou a tendência? Nas redes sociais, no Youtube, proliferam as notícias falsas, as novidades com anos, os “hoax” mais ridículos (termo usado para designar as mentiras ou partidas utilizando a Internet), com uma enorme carga de “viralidade”: a velocidade a que circulam tornam-nos quase impossíveis de contrariar.
Nestas condições, pode dizer-se que a mentira é a nova verdade. As preferências dos cidadãos em democracia deixam de se basear em opções ou programas políticos assentes na realidade, para expressar alinhamentos ideológicos ou escolhas activadas pela emoção, por uma retórica vaga e bem-sonante, sem consideração pelos factos. E todo o esforço de afirmar a verdade estará condenado.
Nestas condições, é a democracia que está em causa.
A novilíngua, que chama “pós-verdade” ao que se está mesmo a ver que é mentira, não passa de outro nome para o velho discurso populista, alimento da tirania.