Numa semana carregadinha de acontecimentos, para além da comoção do ataque de Londres, um saltou à vista: a visita de Angela Merkel à Casa Branca. Foi notório que a chanceler alemã teve que engolir alguns sapos – incluindo a indelicadeza de Donald Trump em negar-lhe um aperto de mão à frente das câmaras – para que a visita não redundasse num fracasso. Não chegou a ser, apesar dos tweets provocatórios do presidente no dia seguinte, mas a verdade é que, do que se viu da reunião bilateral, foi um encontro gélido.
Este acontecimento é uma das primeiras tentativas de pôr em prática uma estratégia relativamente discreta para a política europeia, que reserva desafios internos e externos muito importantes. No plano interno, é necessário travar a vaga da extrema-direita que tem vindo a influenciar, de uma forma cada vez mais evidente, o discurso das lideranças moderadas. O sucesso de movimentos/partidos como o de Geert Wilders e Marine LePen têm empurrado a parte ocidental do continente para um “euroceticismo soft”, para usar a expressão de Cas Mudde, o politólogo holandês que passou recentemente por Portugal.
No plano externo, a Europa tem de lidar com uma cadeira vazia. Donald Trump levantou-se da cabeceira da mesa do mundo liberal, ocupada pelos seus antecessores nos últimos 70 anos, e foi-se esconder atrás do nacionalismo. Obama deu por isso, e mesmo antes de acabar a sua presidência, foi a Berlim. Lembram-se daquela fotografia da chanceler alemã sentada num banco de jardim de costas com o então presidente americano a falar? Soube-se mais tarde, por comunicado conjunto, que aquela conversa que não ouvimos, era uma passagem de testemunho. Angela Merkel, nascida na comunista RDA, tinha um novo (e duplo) papel a desempenhar: manter a Europa moderada, e tentar sustentar a comunidade ocidental das democracias.
A “grande” estratégia Merkel foi enunciada logo no início de 2017, no seu discurso de Ano Novo. Em mais ou menos sete minutos, desenvolveu os quatro argumentos que a compõem. Primeiro, explicou que o terrorismo se combate com forças de segurança e intelligence, mas também com o reforço dos valores das sociedades liberais. Uma espécie de “nós não temos medo” em linguagem política. Segundo, reiterou a importância de acolher refugiados. Uma democracia cosmopolita tem obrigações de hospitalidade (já dizia Kant) que vão para além das fronteiras do seu próprio estado. Esse é, referiu Merkel, o caminho “certo” para um governo que quer ver o seu estado de direito “refletido” no seu dia-a-dia. E no mundo.
Em terceiro lugar, referiu-se ao abalo de instituições que eram dadas como adquiridas. A União Europeia, a “democracia parlamentar” e a “economia social de mercado”. Aqui Merkel apresentou-se não só como chanceler, mas também como a candidata às eleições de setembro 2017 nas quais irá defender estes valores contra “imagens distorcidas”, trazidas por outros candidatos. Subentende-se que se dirigia aos apoiantes da Alternativa para a Alemanha e de outros partidos similares europeus, que defendem a saída dos seus estados da UE com promessas eleitorais de referendos como o que ditou o Brexit; que prometem representar os anseios do povo apontando o dedo às elites que protegem os privilegiados e esquecem “o povo”; e que querem um economia mais protecionista, que, segundo Merkel, destruirá o ciclo virtuoso do sucesso económico alemão (e de outros estados) que permite a redistribuição da riqueza pelos mais desfavorecidos.
O quarto ponto é talvez o mais surpreendente, dada a história alemã desde a reunificação. A Chanceler alerta os alemães para a necessidade de serem eles (conduzidos por si) a fazer o sacrifício de tomar a dianteira desta liderança do mundo ocidental. De defender os valores acima descritos contra posições extremas dentro do espaço europeu e para além do espaço europeu – onde presidência de Donald Trump se tornou uma dor de cabeça (talvez mesmo uma enxaqueca) permanente.
Para Trump, Merkel reservou uma estratégia de paciência. Intui-lhe os pés de barro. Sabe que não tem nem a força nem a lei do seu lado para o desmoronar, mas estabeleceu um tom com tanto de frio quanto conciliatório, para que o comércio internacional Europa-Estados Unidos e a NATO, sobrevivam ao mandato do presidente americano. Reservou também uma pose de estado e de respeito que contraste com a do presidente americano.
É uma forma de fazer política herdada da retórica americana: “liderar pelo exemplo”. Recebendo refugiados, apoiando os partidos democráticos europeus, mantendo a confiança nos mercados, tentando estabelecer pontes com outros estados, tomando a dianteira nas negociações de Minsk, e tentando conter uma Rússia cada vez mais omnipresente nos assuntos internos europeus.
Parece-me que Merkel não quer ser mais que uma líder provisória do mundo liberal. Que está à espera que a América retome a normalidade (poderá ter de esperar muito tempo) para se dedicar aos assuntos da Europa. Não lhe vimos a expressão do rosto na fotografia do banco de jardim, mas sentimos a relutância. A Alemanha está desconfortável em papéis de liderança, especialmente os que impliquem o emprego da força militar. E mesmo que interino, o desafio é dantesco: passar de “Sra. Austeridade” para “Sra. Democracia”. Ou seja, convencer a Europa e o mundo que a democracia liberal cosmopolita é o caminho para a estabilidade, quando tantas forças nacionalistas e extremistas se manifestam com apoio popular significativo no mundo ocidental, dos dois lados do Atlântico.
Não e certo que a Alemanha esteja pronta para desempenhar este papel As lideranças e os estados não mudam de um dia para o outro e nem sempre conseguem acompanhar as necessidades e a velocidade do sistema internacional. Mas a verdade é que só sobrou a Chanceler e a cabeceira vazia na mesa das democracias ocidentais.
Investigadora do IPRI