Do médico que me seguiu durante anos não direi que é um amigo, mas alguém com quem gosto de discutir. E, até prova em contrário, acreditarei que gosta de discutir comigo. Discordamos em quase tudo. Às vezes, com excesso de veemência – chamemos-lhe assim. Só concordamos no génio do Eça, no humor do Camilo e nas perfeições de Plisetskaia.
E foi a propósito de Maya Plisetskaia, de um excelente documentário que ambos víramos, que tivemos o primeiro grande embate. A conversa derivou para a ida dele ao Bolshoi, na última viagem que fizera a Moscovo, e a São Petersburgo, e como havia, então, encontrado as coisas: não tinha sentido qualquer insegurança nas ruas. Mesmo em horas tardias, ao regressar ao hotel, fazia-o calmamente, com espírito de passeio, ao contrário do que havia experimentado nos tempos de Yeltsin – é uma pessoa que conhece muito bem o leste europeu, mesmo o leste dos tempos da Cortina de Ferro, um ex-militante comunista, estudante na União Soviética, regressado a Portugal no início da sua carreira profissional.
O pomo da discórdia foi Putin. Estávamos em 2013, um ano depois de Putin se ter reelegido como presidente. Resumidamente: defendia ele que o território russo era imenso, as etnias diversas e o passado imperial, portanto, sem uma democracia com características limite, vulgo «musculada», e uma matéria cultural comum, seria ingovernável. A minha questão era outra: quando é que uma democracia deixa de ser democrática?
Afinal, não era, então, exactamente um segredo que Putin andava na senda do pensamento de Ivan Ilyin, o filósofo russo exilado por Lenine em 1922, um dos 200 do infame «navio dos filósofos» sobre os quais Troskty terá dito: «Exilamo-los porque não temos razões para matá-los, mas não os podemos tolerar».
Foi Ivan Ilyin quem ofereceu as razões metafísicas e morais para o totalitarismo político e um manual para o fascismo cristão – o mesmo filósofo que Rachmaninoff sustentou depois de caído em desgraça, e só por causa disso, se fosse hoje, já Rachmaninov tinha sido cancelado… uma tristeza para os nossos lindos ouvidos. Em 2005 já havia sido feita, a pedido de Putin, a exumação e transladação do corpo de Ivan Ilyin da Suíça para a Rússia – com uma nova cerimónia fúnebre e todo o simbolismo de reparação da alma russa dilacerada pela guerra civil que sucedeu à revolução bolchevique. Como se a anulação retroactiva das clivagens russas, entre inúmeros pedidos de transladação, cerimónias fúnebres, entrevistas pseudo-históricas e propaganda, alimentassem o corpo pseudo-místico da nação.
Aliás, e agora a deriva é minha, parte substancial do pensamento de Dugin, sobre quem escrevi aqui “A Nova Rússia de Antes”, é de Ivan Ilyin, apesar de, nos anos 90, Dugin ter extrapolado a metafísica de Ivan Ilyin para um esoterismo exacerbado e ritualista que depois conteve quando se tornou, em alguns meios, credível. As ideias de missão e de nacionalismo; a sujeição do Estado de Direito ao nacionalismo, à missão espiritual da nação e ao seu líder; a conversão dos adversários políticos em inimigos espirituais; a democracia como alavanca do individualismo; a unicidade orgânica do povo russo (a mesma que permite dizer que o povo ucraniano não existe); a reparação da divina totalidade do mundo e da unidade da sua harmonia, a tal missão espiritual foram bebidas em Ivan Ilyin e simplificadas. E muito mais. Mesmo as carismáticas características do poder que deve ter aquele que lidera o povo na sua missão espiritual e política.
Ivan Ilyn, a despeito da evolução muitíssimo infeliz do seu pensamento político – e o ponto de partida do pensamento deste homem e o ponto de chegada são distantes, de um estudioso de Hegel e Kant cuja dissertação e ensaios merecem ser lidos, a alguém que apoia Mussolini, Hitler, e justifica o nazismo como a resposta natural à revolução bolchevique – era um homem da cultura.
Putin, o «ditador nacional», é um homem de acção e aprendeu de Ivan Ilyin que a «política é a arte de identificar e neutralizar o inimigo».
A minha pergunta permanece, mas agora envolvida na Europa e nos Estados Unidos: quando é que uma democracia deixa de ser democrática?
PS: recomendo a leitura de The Philosophy of Hegel as a Doctrine of the Concreteness of God and Humanity, de Ivan A. Ilyin e The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America de Timothy Snyder; e deste último autor também este belíssimo artigo.