No fim de 2016 – depois de incumpridos os acordos de Budapeste onde se garantia a unidade territorial ucraniana em troca das armas nucleares que a Ucrânia herdara dos tempos soviéticos –, às portas do Kremlin, Vladimir Putin inaugurou uma estátua de 17 metros do príncipe e santo seu homónimo, Vladimir, o Grande ou São Vladimir, convertido ao cristianismo no século X. É a figura fundante do mítico e antigo Rus naquela que será a zona de Kyiv.

O que queria Putin afirmar quando mandou erigir aquela estátua do santo príncipe amado pelos ucranianos? A resposta clara e inequívoca chegou através do ensaio que publicou em 2021: o novo príncipe Vladimir, Putin, também defenderia o povo dos seus inimigos. E o novo santo Vladimir, Putin, também devolveria a Rússia, na sua mítica inteireza, à Igreja Ortodoxa, salvando-a, não apenas dos seus inimigos, mas da decadência moral ocidental, isto é, dos infiéis, das simbólicas 800 concubinas – o número atribuído ao harém de São Vladimir antes da sua conversão. Se dúvidas houver, basta lermos o sermão feito por Kirill, o patriarca de Moscovo, no dia 6 de Março deste ano, por ironia Domingo do Perdão para a Igreja Ortodoxa.

Diante da estátua, diante do ensaio e da invasão russa da Ucrânia, uma pergunta permanece: pode-se matar aquilo que se ama e «faz parte da alma russa»?

Voltei a estes pensamentos no domingo, ao saber que na noite anterior, a 20 de Agosto, Darya Dugina, de 29 anos, jornalista, comentadora política e activista, filha do ideólogo ultra-nacionalista Aleksandr Dugin, cuja mundivisão partilhava, havia morrido na sequência da explosão do Toyota Land-Cruiser em que circulava, numa pequena cidade nos arredores de Moscovo, após ter participado no «Tradição», um festival de carácter nacionalista onde o seu pai fora um dos conferencistas convidados.

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A notícia, veiculada pela agência Tass, informava também que Darya Dugina, na altura, conduzia o carro do seu pai, onde seguia sozinha, e que a bomba colocada exteriormente por debaixo do assento do condutor se destinava ao seu pai – este facto foi posteriormente desmentido, já que aquele era, confirmadamente, o carro de Darya Dugina.

Darya Dugina viveu como a pequena sereia de Hans Christian Andersen: decerto por amor, deu a sua voz ao seu pai, à causa, à Rússia de Putin. Em troca recebeu um lugar naquele mundo onde veio a ser assassinada. O mesmo que a premiará com a alma imortal dos mártires – a sereia de Hans Christian Andersen, ao contrário da sereia da Disney, morre, mas em vez de se transformar em espuma, o destino de todas as sereias, recebe uma alma imortal, afinal, preferiu a sua própria morte à do seu amado.

Outra pergunta permanece: pode-se viver com uma voz que não é a nossa, num mundo que não é o nosso, ainda que seja por amor?

,Em 36 horas apenas o FSB, o serviço secreto russo, informou que havia fechado o caso. A saber: uma agente ucraniana, uma mulher acompanhada da sua filha de 12 anos, infiltrara-se no prédio de Darya Dugina, onde arrendara uma casa com o objectivo de vigiar os seus hábitos e organizar o seu assassinato. Essa mulher, cujo rosto é agora conhecido no mundo inteiro devido às imagens divulgadas pelo FSB, terá assistido ao festival, armadilhado o carro e, posteriormente e de acordo com as imagens das câmaras de vigilância fornecidas pelo FSB, fugido pela fronteira russa com a Estónia. Portanto, e de acordo com o FSB, o alvo terá sido sempre Darya Dugina e não o seu pai.

A Ucrânia nega qualquer responsabilidade sobre o assassinato, classifica-o como um acto terrorista – o qual repudia. E não tem, na altura em que se aproxima das democracias ocidentais e do seu objectivo de fazer parte da União Europeia, interesse em ser conotada com actos de terrorismo. O New York Times sublinha o facto de o FSB ser, antes de qualquer coisa, um braço político ao serviço do poder instalado, e de ter levado a cabo assassinatos e atentados em solo russo e estrangeiro com a atribuição da responsabilidade aos seus inimigos. O Exército Nacional Republicano, que será um movimento armado de resistência ao governo russo, através de Ilya Pomoranev, um ex-membro da Duma e o único a votar contra a anexação da Crimeia, agora residente em Kyiv, reivindicou o atentado. Não há, porém, sequer a confirmação de que tal grupo de resistência armada exista. Quem matou Darya Dugina? Quem beneficia com a sua morte?

Não se sabe. Nem creio que venhamos a saber. A sua morte serve a muitos interesses conflituantes.

Para o movimento ultra-nacionalista, para quem defende que territórios como o ucraniano existem apenas como matéria a ser reabsorvida pela Rússia por fazerem parte de uma mesma matriz territorial, cultural e religiosa, o assassinato de Darya Dugina cria uma «guerreira» mártir no «altar da vitória» como o seu pai, no seu velório, pediu.

Para a Rússia de Putin serve de pretexto para reforçar a necessidade da guerra contra a Ucrânia – como, aliás, vimos anteriormente com os atentados supostamente perpetrados por georgianos em plena Moscovo. Há milhões de russos sentados à frente da televisão estatal, desinformados, manipuláveis e impotentes.

Para os russos opositores de Putin serve como manobra de intimidação aos círculos do poder.

Diga-se de Aleksandr Dugin o que se disser, que está próximo ou afastado do regime, mais ou menos distante de Putin, os factos permanecem: houve, dos anos 90 em diante, uma extraordinária capacidade de penetração do seu pensamento mito-geopolítico na Rússia, na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil – sem se saber, efectivamente, a profundidade das suas ligações ao Irão.

Isto não acontece por acaso. Este contágio é concertado. Não se faz sem fundos que o sustentem. Afirma-se de Darya Dugina que o seu site de informação, ou desinformação, se quisermos ser exactos, era patrocinado por Yevgeny Prigozhin. Terá sido, aliás, este o argumento para a incluir na lista dos sancionados: ter um site de desinformação sustentado por um oligarca. Que não é um oligarca qualquer. É o homem de confiança de Putin – e enriquecido por este. O mesmo que estabeleceu o grupo Wagner, a infame companhia militar privada, cujas intervenções na Síria, na Líbia, na República Centro Africana, como na Crimeia e no Donbass são desgraçadamente conhecidas. Tal como as mortes dos jornalistas que ousaram investigá-lo.

A alma russa a que a ficção histórica de Putin procura dar corpo na sua investida expansionista, enquanto ele próprio se recria como legítimo herdeiro do império de Bizâncio, expande-se. A mito-ideologia religiosa e política, a amálgama grandiloquente que é o pensamento de Aleksandr Dugin propagado exemplarmente pela sua filha, e usado até na morte desta, serve aos interesses de Putin: ora congrega os esforços num objectivo comum, ora se organiza como messianismo salvífico da decadência ocidental, quer na Rússia quer no exterior, com as suas ilhas de apoiantes, mais ou menos informados, que compõem os movimentos ultra-nacionalistas internacionalmente coordenados.

Mas tudo isto é fogo-fátuo. Até a morte criminosa de Darya Dugina o é. O objectivo da Rússia de Putin é o mesmo de sempre, numa linha ininterrupta de séculos até 1991, e logo retomada em 2000. O poder absoluto. Despótico. Putin, o novo príncipe e santo, bebe na mesma fonte do Grande Cão, na fonte de Ivan, o Terrível, na fonte de Estaline.

O Império Romano do Oriente está a bater à nossa porta.

A autora escreve segundo a antiga ortografia