Os períodos de transição política são instáveis, complexos e, acima de tudo, perigosamente voláteis. O fim da União Soviética não foi uma excepção. E o governo de Yeltsin, o primeiro da nova Federação Russa veio provar essa volatilidade – sem demérito para a transição pacífica e a preservação de fronteiras que Yeltsin assegurou.

Perto do fim do mandato de Yeltsin, em 1999, a Rússia vivia o descalabro social e económico e estava perto de colapsar. A inflação estava fora de controlo; a dívida externa havia aumentado e o orçamento do Estado reduzido, ambos para níveis nunca vistos anteriormente; as privatizações e a corrupção avançavam de braço dado. Estima-se que durante a governação de Yeltsin, devido à crise financeira e ao desaire no sistema de saúde, tenha havido um excesso de mortalidade de cerca de três milhões de pessoas.

Naquele tempo limite de 1999, quando a comida já faltava nas prateleiras dos supermercados e as ruas se agitavam, a Procuradoria Geral, sob a direção de Yuri Skuratov, levava a cabo uma investigação de corrupção, com braços internacionais, que ameaçava o Kremlin ao mais alto nível: chegava a Yeltsin e à sua família.

Entre o fim de 1997 e Agosto de 1999, o governo de Yeltsin tivera cinco Primeiros-Ministros. Com esta investigação a decorrer, a par da ameaça de caos social, Yeltsin precisava de um Primeiro-Ministro que assegurasse a manutenção da Federação Russa e em simultâneo garantisse a sua segurança e a da sua família. A escolha recaiu sobre Putin, o director do FSB, a agência herdeira do KGB.

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Rapidamente apareceu uma gravação onde o Procurador Geral era visto com duas prostitutas num quarto de hotel. Yuri Skuratov demitiu-se, a gravação foi parar à televisão estatal onde foi exibida e Putin, ele mesmo, garantiu que o homem na gravação era Yuri Skuratov – se era ou não, não saberemos, o que se sabe de facto é que a gravação foi o resultado de uma operação do FSB. Quando Yeltsin se demitiu, Putin substitui-o. Mas, em Agosto 1999, quem era Putin?

A história demonstrou que era, então, a mesmíssima pessoa que é hoje.

À data, a 16 de Agosto, as eleições parlamentares distavam meses. A DUMA confirmou Putin no cargo displicentemente, como mais um, isto é, o sexto Primeiro-Ministro em dezassete meses. Sendo este sexto Primeiro-Ministro, Putin, pouco mais do que um desconhecido – vale a pena ler este artigo de Vladimir Kara-Murza, o agora recipiente do Prémio Václav Havel de Direitos Humanos 2022, detido em Abril do ano passado e sobrevivente de duas tentativas de envenenamento.

Três semanas após a sua confirmação como Primeiro-Ministro pela DUMA, uma sucessão de violentos ataques bombistas a prédios de apartamentos no Daguestão, em Moscovo e nos seus arredores levaria à morte de mais de trezentas pessoas — o artigo do Público sobre estes atentados mostra a relevância de Putin em 1999. Uma semana depois, a Rússia invadia a Tchetchénia a pretexto da aniquilação dos terroristas perpetradores do ataque. Não houve então – e não há hoje – evidências de que os ataques bombistas tivessem sido levados a cabo por tchetchenos. Assim mesmo, Putin subiu diariamente nas intenções de voto. Passou de 2%, antes dos ataques bombistas, a 55% em Dezembro, três meses depois da invasão da Tchetchénia. Foi nesta altura conveniente, a 31 de Dezembro, que Yeltsin se demitiu, o que o colocou como presidente interino e permitiu que adiantasse as eleições três meses, garantindo o seu decurso enquanto a sua popularidade estava em alta. «Para evitar uma revolução, nada como uma guerra pequena e vitoriosa para distrair a atenção das massas». E criou a sua imagem pública.

Após ter ganho as eleições com 53% dos votos garantiu a imunidade antes prometida a Yeltsin e à sua família. E iniciou a reconfiguração da face política, económica e cultural da Rússia em contra-ciclo com a aproximação ao ocidente do período anterior. 26% dos cargos políticos de liderança foram atribuídos a antigos colegas de Putin do FSB-KGB – na verdade, foi estimado um número superior, 78%. A energia, a banca, a segurança foram desde então os meios de manutenção do poder de Putin, o divisor dos recursos, aquele que os entrega e deles participa. A infame Rússia S. A..

Tchechénia, Geórgia, Crimeia, Síria foram um caminho de terror para a consolidação do poder interno e da sua expansão no teatro externo, uma vez mais tentado com a invasão de 24 de Fevereiro – para não falar na guerra híbrida que há vinte anos faz às democracias ocidentais.

Se recordo o que todos sabemos, o início da tomada de poder de Putin, é só para falar da sua consistência: é o homem que sempre foi. Convinha aos nossos generais comentadores e escrevinhadores afins, mais ou menos admiradores de Putin, recordá-lo também.

A autora escreve segundo a antiga ortografia