Almofada. A almofada é uma peça indispensável à discussão do orçamento neste rectângulo a que chamamos Pátria. Mal começa a entrever-se o orçamento no horizonte, a esquerda e aquelas almas que se têm por bondosas e amigas do próximo com o dinheiro alheio aparecem carregados de almofadas. Asseveram tais criaturas, com a candura de quem está num anúncio do “Vamos dormir”, que algures existe uma almofada de 243 milhões para novos funcionários públicos, mais uma almofada de 500 milhões de euros para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), que por sua vez é apresentado como a almofada da Segurança Social. A sustentabilidade da Segurança Social está aliás transformada numa espécie de Molaflex: são só almofadas e almofadas das almofadas a garantirem o que garantidamente sabemos não estar garantido, a sustentabilidade da Segurança Social, pois a Segurança Social depende cada vez mais de verbas transferidas do OE – verbas essas obtidas através dos célebres adicionais, que são a reencarnação da sumaúma com que antigamente se enchiam as almofadas, uma vez usada tal coisa nunca mais nos livramos dela – o que obviamente não só a faz menos segura como mais politizada. Orçamentalmente falando somos uma espécie de sem-abrigo que se imagina sultão rodeado de otomanas. Já se internou gente em hospícios por delírios bem menores.
Aprofundar. Pela mesma razão por que chamam centros de trabalho às sedes e companheiras às mulheres, os comunistas não negoceiam, aprofundam. Negociar é uma actividade que lembra o capitalismo. Ora os comunistas do capitalismo só querem a legislação que lhes garante poder, independentemente dos votos que obtêm nas urnas (já ouviram falar de contratação colectiva e portarias de extensão? É o chamado monopólio vermelho). Quando um comunista declara que está a aprofundar quer simplesmente dizer que o partido está a preparar-se para dizer sim àqueles e àquilo a que anda há dias a dizer não. Obviamente, amanhã, o mesmíssimo PCP pode voltar a dizer não àquilo a que agora disse sim, argumentado que o aprofundamento não foi satisfatório. Pois em matéria de aprofundamento não satisfatório os comunistas culpam sempre a outra parte. Com tanto que aprofunda o PCP já devia ter chegado à Nova Zelândia, país que está geograficamente nos nossos antípodas, mas infelizmente o PCP apenas se interessa por aprofundar as nossas carteiras.
Aceno. O PS tornou-se a nova candidata a Miss Fotogenia – sim, Fotogenia, aquela que pode não ser muito bonita mas parece e no parecer é que está o ganho – daí a importância do aceno. Todos os dias o PS acena com medidas e mais medidas de modo a convencer o PCP ou, ainda mais importante, a poder ficar bem na fotografia caso o orçamento venha ser chumbado. Os leitores mais esclarecidos nas manias da contemporaneidade vão obviamente recordar que isso das misses serem bonitas é coisa de outrora. Agora os concursos de misses são acusados de discriminação. De quem? Das feias ou se preferirmos das menos bonitas. Pelo menos é isto que está a acontecer em França. Mas, por enquanto, esta causa ainda não foi apadrinhada pelo PS, logo a preocupação do PS é ficar bem na fotografia. Com tal intuito o PS acena, acena e diz “Vejam como acenamos ao PCP”. Do que já vimos, ouvimos e lemos nos últimos anos podemos asseverar que ninguém em Portugal acena como o PS.
Avanço. Se com os comunistas o PS aprofunda, com o BE avança. É politicamente um cansaço mas dá belos títulos: OE2022: Governo aponta avanços em sete das nove propostas do Bloco de Esquerda. O avanço pode ser um verdadeiro atraso, como acontece com o arrendamento: quanto mais o BE avança com as suas teses mais casas faltarão para arrendar, mas mediaticamente trata-se de um avanço. De avanço em avanço chegaremos à miséria final, que como se sabe é o estado avançado do socialismo.
Costa dá. Já não bastava o infantilizado imaginário nacional em torno dos governos que dão, temos agora este tu cá, tu lá de troca de bens (deve ser isto a economia circular!): Costa dá ao PCP mais pensões e creches gratuitas. O OE está transformado numa barraca de rifas, em que pode sair tudo e o seu contrário. Não há um fio condutor, uma estratégia. Só a táctica de engordar o Estado para continuar a ser poder.
Folga. A folga orçamental é a versão portuguesa da Falha de Santo André: quando na Califórnia os mais corajosos se abeiram dessa linha/fractura onde se encontram duas placas tectónicas perscrutam as profundezas da Terra para ver se de lá vem algum sinal sobre o próximo Big One. Na versão portuguesa, quando se espreita a folga orçamental encontra-se a dívida pública: Portugal tem a terceira dívida pública em relação ao PIB mais alta da UE, 135,4%, para sermos mais exactos. À nossa frente só a Grécia e a Itália, coisa que não é de espantar. Acontece que as dívidas públicas são como os tremores de terra na falha de Santo André: sabe-se que um dia o que parecia sólido vem abaixo como um castelo de cartas. Entretanto espera-se que esse dia não seja para já. Esta geologização da discussão orçamental ganhou um novo capítulo esta semana quando Ana Catarina Mendes declarou sobre a relação com PCP e o BE: “Há divergências mas não há um Monte Evereste a separar-nos.” Realmente já tínhamos dado por isso e é por isso mesmo estamos como estamos: encurralados num trilho de escalada que não leva a parte alguma.
Manga. A relação do PS com as mangas sempre foi dada a equívocos: em Novembro de 2014, o PS e seus compagnons arrancavam as vestes indignados com a nefanda, nunca vista e atroz prisão de José Sócrates na manga do avião. Ao certo nunca se percebeu qual o local que o PS achava indicado para proceder a tal detenção mas agora, em 2021, a manga que interessa ao PS é outra. “Não foi tirado da manga” – garante António Costa a propósito dos avanços, almofadas e folgas com que acena ao BE e ao PCP. Claro que não foi tirado da manga, foi tirado dos bolsos dos portugueses.
Margem. A confirmação da nossa redução a um país náufrago chega-nos todos os anos com o anúncio da margem. Aí por meados de Setembro começa a ouvir-se: Há margem! Há margem! E com a alegria de um grumete embarcado nas naus da História Trágico-Marítima, logo se pula e salta porque já temos margem. Não interessa que margem é essa, nem o que nos aguarda na margem. O que interessa é a margem em si mesma.
Três falências em 34 anos (1977, 1983 e 2011) são mais que suficientes para confirmar que estamos agora a redigir uma outra História, a História Trágico-Orçamental, sempre sob o canto de sereia do “Há margem!
Muito ambicioso. Das duas uma: ou a ambição do nosso OE é reduzir uns portugueses à pobreza e outros à servidão fiscal ou a expressão “OE muito ambicioso” não quer dizer em Portugal, em 2021, o mesmo que nos restantes países do Planeta. Como orçamentalmente falando a verba realmente disponível escasseia, sobram a produção de legislação, o anúncio de medidas a granel e a criatividade poética da linguagem. Assim a ambição deste OE muito ambicioso vem acompanhada de medidas também elas de designação excelentíssima nos propósitos, como a Agenda para o Trabalho Digno e o novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Dão-se alvíssaras a quem conseguir encontrar neste chorrilho de ambições algo mais que o reforço do estatismo, do poder da CGTP e da pressão sobre as empresas privadas. A propósito do regime de exclusividade para os médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – uma reivindicação antiga do BE a que este OE teve a ambição de responder – cabe perguntar se os trabalhadores do SNS também vão ter de se tratar exclusivamente no SNS? É que a degradação do SNS é tal que nem os seus trabalhadores lá querem ser tratados, como se verificou: dos 105 507 novos inscritos na ADSE, a esmagadora maioria são trabalhadores do SNS. Mas enfim, o que conta é a ambição. Sobretudo a ambição de ser poder custe o que custar
Passos significativos. “OE2022: João Leão mostra disponibilidade para dar passos significativos no aumento extra das pensões.” O passo significativo é aquilo que temos de mais aproximado do célebre passo em frente à beira do abismo. Aquilo que se apresenta levianamente como “passos significativos” não passa de um assumir de compromissos entre parceiros que são mental e tecnicamente irresponsáveis: as contribuições dos trabalhadores hoje no activo estão a pagar agora mesmo pensões muito acima daquelas que esses mesmos trabalhadores vão receber quando se reformarem. Os passos significativos dados entre quem só pensa e age em função do imediato não são passos significativos. São armadilhas.
Os trunfos. Quando se pensava que já se tinha esgotado este léxico penoso eis que chegam os trunfos. Depois da almofada, do aprofundar, do aceno, da margem, do passo significativo, era mesmo o que vinha a calhar: os trunfos. Temos trunfos para todos os gostos. Ora são “Os trunfos de João Leão para convencer a esquerda a viabilizar o Orçamento”, ora Santos Silva a alertar-nos para o risco de perdermos “dois trunfos”: o consenso a nível de disciplina orçamental e a estabilidade política, caso a proposta de orçamento para 2022 seja chumbada. Todos os dias há mais trunfos – a saber, os compromissos assumidos por António Costa para que o PS se mantenha no poder. Perante o grotesco de tudo isto, que pelo menos São João Crisóstomo, padroeiro dos oradores, nos acuda , já que São Mateus, que tutela economistas, financeiros e contabilistas nos abandonou. De vez.