Enquanto Marcelo Rebelo de Sousa volta às aulas, na telescola, movido por  irreprimíveis desejos de comunicar afectos, e celebra a vinda da Liga dos Campeões a Portugal como um feito nacional (mesmo com a covid, “somos os maiores”); enquanto António Costa tenta pôr um seu ex-ministro à frente do Banco de Portugal, a ser fiscalizado por um conselho por ele mesmo nomeado enquanto ministro; enquanto a ministra da Justiça escolhe para seu conselheiro um magistrado punido no passado por pressionar procuradores que investigavam Sócrates; enquanto Bernardo Ferrão, no Polígrafo da SIC, se aplica a mostrar que é falsa a notícia posta a correr nas “redes sociais” segundo a qual Catarina Martins foi teletransportada de Marte, com as proverbiais antenazinhas disfarçadas, para subjugar o planeta – enquanto tudo isto se passa, à beira do abismo, com uma deprimente regularidade toda portuguesa, o mundo continua a mover-se. Não forçosamente da melhor maneira, é verdade. Como declarou Michel Houellebecq numa entrevista recente, o “novo normal” será muito parecido com o “velho normal” – só que pior.

Uma das formas que o mundo tem adoptado para manifestar o seu movimento é através do derrube e da vandalização de estátuas. As televisões e vários comentadores entusiasmam-se com o feito, vendo nele um símbolo maior do progresso da consciência humana que um dia derrubará o “fascismo” e o “racismo sistémico” que são a triste lei neste nosso planeta. O mínimo que se pode dizer é que é uma luta que vem de há muito tempo. E não, não estou apenas a referir-me à destruição dos Budas de Bamiyan pelos simpáticos talibãs, esses grandes humanistas, ou à eliminação de Palmira pelo Estado Islâmico. Os primeiros cristãos em posição de algum poder dedicaram-se também com afinco à destruição das estátuas dos deuses pagãos (não, parece, por serem falsos deuses, mas por serem deuses maléficos, isto é dotados de uma acção real). Os protestantes ingleses também apreciavam o desporto, como ainda hoje se pode ver, por exemplo, na Catedral de Ely. E a revolução francesa não se limitou, como se sabe, a derrubar a Bastilha, onde, ao que consta, se encontravam apenas oito residentes, que não viram com bons olhos o transtorno dos seus hábitos quotidianos: vandalizou igualmente, entre muitas outras coisas, os túmulos dos reis de França em Saint-Denis. Mais tarde, a Comuna de Paris derrubou a coluna da Place Vendôme (a que se vê agora é uma reconstrução), anunciando, de acordo com a loucura da época: “A comuna de Paris, considerando que a Coluna de Vendôme é um monumento bárbaro, símbolo da força bruta e da falsa glória, uma afirmação do militarismo, a negação do direito internacional, um permanente insulto dos vencedores aos vencidos, um perpétuo ataque a um dos três grandes princípios da República Francesa, a fraternidade, decreta – artigo único: A coluna de Vendôme será demolida“.

Mesmo deixando de lado os casos das estátuas de ditadores (Lenine, Estaline, Hitler, Saddam) derrubadas aquando de revoluções ou de alterações violentas de poder, casos que, apesar de tudo, relevam de uma lógica diferente, a lista do parágrafo anterior poderia naturalmente prolongar-se num número extensíssimo e indefinido de volumes numa biblioteca. O golpe mortal dado ao ”racismo sistémico” representado pelo cortar a cabeça de Colombo, ou, mais modestamente, pela vandalização da estátua do Padre António Vieira em Lisboa, repetiu-se vezes sem conta. A única surpresa é: como é que um processo tão simples, justo e eficaz não produziu ainda o almejado objectivo de nos tornar a todos criaturas angélicas e infinitamente amantes umas das outras? Mistério.

É claro que a arte pública, a que é exibida nas ruas e não nos museus, contém em si virtualmente uma possibilidade de violência estética ou simbólica. E o “culto moderno dos monumentos” e dos “lugares de memória”, com o seu conjunto de comemorações, aumenta essa possibilidade. Lembrem-se da escultura de Pedro Cabrita Reis em Leça da Palmeira. Ou, para dar um exemplo que tenho praticamente em frente à minha casa, o monumento aos Heróis da Guerra Peninsular (começado em 1909 e só concluído em 1952!), na Rotunda da Boavista (mais exactamente: Praça Mouzinho de Albuquerque), no Porto. Há muitos anos, os pais de um amigo francês resolveram fazer uma viagem por Portugal e uma tarde contaram-me que tinham passado por um monumento muito feio, nem mais nem menos o da Rotunda da Boavista. Não pretendo que ele seja de uma beleza excessiva, mas algo me diz que a figura no seu topo – o leão inglês subjugando a águia francesa (“o leão a galar a águia”, como já ouvi) – lhes tenha inconscientemente ferido o orgulho nacional gaulês.

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De qualquer maneira, o ódio ritual aos monumentos, agora de vento em popa, tem a sua origem última, creio, numa colossal falta de sentimento da história e numa correspondente exorbitação da memória. Há questões filosóficas internas à história que não relevam propriamente de uma filosofia da história. São as mais interessantes. Uma delas é a da relação entre história e memória. Qualquer que seja a posição que se adopte – a memória é a matriz da história, ou a memória (individual ou colectiva) é um dos objectos da história: elas não são, de resto, inconciliáveis -, a diferença entre ambas persiste. A memória é egocêntrica e define a identidade dos indivíduos ou dos grupos. A história, por sua vez, conduz ao descentramento e à distância, nomeadamente à distância para com o passado, visto como um objecto independente de nós. Volto à Praça Mouzinho de Albuquerque. Viver aqui não me inspira – por contiguidade, poder-se-ia dizer – qualquer sentimento de afinidade com o militar português que, no Chaimite de Jorge Brum do Canto, se dirige ao régulo Gugunhana com o célebre “Senta-te, preto!”. É exactamente o contrário que se passa nas cidades: as figuras que as ornam dão-nos a ver a distância que nos separa delas e são-nos utilíssimas para isso. À sua maneira, são uma condição de progresso e de autonomia dos indivíduos, impedem-nos de viver no interior do mito, com a sua ilusória inteligibilidade e a sua heteronomia. Simultaneamente, permitem-nos pensar o futuro, imaginar o futuro.

Em contrapartida, a redução da história à memória conduz à alucinação do passado no presente, isto é, desrealiza o passado enquanto passado. A partir daqui tudo é possível. Passa-se da história para o mito. Passamos a ver tudo sem distância, como numa espécie de reality show permanente. Se a história traz distância, autonomia e libertação para o futuro, a redução da história à memória, nomeadamente à memória de certos grupos sociais, acarreta a heteronomia e a impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, tanto para o tentar compreender como para medirmos a distância (histórica) que dele nos separa. Sem tal distância, encontramo-nos um pouco na situação daquele francês que vai a Londres e que, depois de um passeio pela cidade, chega a Trafalgar Square, reflectindo: “Os ingleses são malucos! A quem é que lembraria dar nomes de grandes derrotas militares às principais praças de uma cidade?”.

O actual vandalismo, com a sua desesperada tentativa de obliteração do passado, que é também obliteração do futuro, sempre existiu, entre as mais diversas culturas. Até a crença numa eficácia mágica causal das estátuas é ainda discernível. As damnationes memoriae não são de hoje, como se viu. Mas, por mais que o saibamos, há algo que assusta particularmente: é a inexistência de um princípio interno de limitação. De facto, o que é que legitimamente impede os presentes descendentes dos bravos dácios de, picareta na mão, destruírem a coluna de Trajano? Ou os derrotados da batalha de Hastings de pegarem fogo à tapeçaria de Bayeux? De acordo com a maneira de pensar em voga, que entusiasma a nossa esquerda, nada. Pouca história e muita memória dão nisto. O nosso Mamadou Ba, bem como uma extensa legião de copiões que copiam as suas cópias, pôs entre nós em voga a expressão “sujeitos racializados”. Sugiro que os adeptos da presente vaga de destruição das estátuas – estátuas que são, repito, um poderoso elemento, por mais involuntário que seja, da consciência da nossa autonomia por relação ao passado – passem a ser designados por “sujeitos auto – ou hetero – idiotizados”.