Como já aqui contei, uma das melhores coisas de ser um colunista regular da imprensa são os livros que me dão. Um dos livros que me ofereceram recentemente foi o “Mulheres Livres, Homens Livres”, de Camille Paglia, publicado em Portugal pela Quetzal. O que não contei foi o motivo da oferta. Quem mo deu foi alguém que gostou dos meus artigos sobre a guarda partilhada de crianças — em que, contrariando as Capazes e outras associações que se dizem feministas, defendi a presunção jurídica da residência alternada após o divórcio.

Na verdade, muitas das pessoas que gostaram dos meus artigos sobre guardas partilhadas, em que basicamente advogo que as crianças têm o direito de passar tanto tempo com os pais como com as mães, recomendaram-me este livro da Camille Paglia, como se eu nela encontrasse apoio para o que defendo. Como diz o provérbio, inimigo do meu inimigo meu amigo é. Como já disse, uma dessas pessoas foi mais longe e mandou-mo pelo correio. Mas, se é verdade que Paglia maltrata o feminismo tipo Capazes de uma forma bem mais agressiva do que eu, a realidade é que, neste assunto concreto, as implicações do que Paglia defende são as opostas do meu artigo. Para Paglia, a biologia determina grandes diferenças entre homens e mulheres e a forma como cada um vive a parentalidade, levando as mulheres a dedicarem-se mais à casa e às crianças e os homens ao trabalho para assegurar o sustento. O que, logicamente, daqui decorre é defesa do status quo, em que as crianças, invariavelmente, ficam com as mães, como as Capazes defendem.

Este biologismo de Paglia é esticado ao absurdo. Basta atentar na seguinte passagem (pág. 66): “eu penso em primeiro lugar que a ilusória certeza masculina de que a objectividade é possível se baseia na visibilidade dos seus órgão genitais. E, em segundo lugar, que certeza é um afastamento defensivo da ansiedade induzida pela invisibilidade do útero. As mulheres tendem a ser mais realistas e menos obsessivas devido à tolerância para com a ambiguidade, que elas descobrem pela incapacidade de conhecerem os próprios corpos. As mulheres aceitam o conhecimento limitado como sendo a sua condição natural, uma grande verdade humana que um homem pode levar a vida inteira a tentar alcançar”.

Percebo que isto pretende ser uma metáfora, mas a ideia de que o facto de termos os órgãos sexuais externos ou internos determina a forma como interpretamos o mundo parece-me tão absurda que está para além dos recursos estilísticos. E durante dezenas de páginas insiste nesta ideia, às vezes com passagens dignas de alguns poetas, como quando escreve que “cada corpo feminino contém uma célula da noite arcaica, diante da qual o conhecimento se sustém”. Este é, na verdade, um dos méritos do livro: mesmo quando defende ideias com que não concordamos, por estar tão bem escrito, continuamos a gostar do que lemos. Na verdade, tenho muitas vezes a mesma sensação com a revista britânica The Economist: é tão bem redigida que ao ler alguns dos seus artigos, muitas vezes, esqueço-me de que discordo deles.

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Adiante. Não quero insistir nesta ideia, porque, se discordo do biologismo que a autora defende (e longe de mim defender a ideia contrária de que a Biologia não conta para nada), também é certo qur estou de acordo com muito do que ela escreve. Por exemplo, e tal como referi no artigo sobre a Serena Williams, concordo com a acusação de Paglia a alguns movimentos feministas de que quase infantilizam a mulher ao tratarem-na sempre como vítima, como se fosse um ser não passível de ser responsabilizado pelos seus actos.

Quando há umas semanas foi publicada, aqui no Observador, uma crítica de João Pedro Vala a este livro, ia eu a cerca de um terço do mesmo. João Pedro Vala foi bastante duro, acusando o livro de ter algumas passagens ilógicas e incompreensíveis e de ser bastante repetitivo. Nessa altura, concordei com ele, mas, à medida que continuei a ler, o livro foi crescendo em mim e cheguei ao fim com a sensação de ter lido uma excelente obra. Correndo o risco de ser injusto, ouso dizer que João Pedro escreveu quando não ia a mais de meio do livro.

Camille Paglia deixa claro ao que vem. Assume-se como uma lésbica feminista, devota de Simone de Beauvoir, revoltada contra algumas das novas correntes do feminismo, especialmente aquelas que considera serem herdeiras de Rousseau. O livro é uma coletânea de vários textos, que vão desde os bastante eruditos a meros artigos de opinião. Muito eclético, portanto. Entre os mais eruditos, temos, por exemplo, um capítulo dedicado ao busto de Nefertiti. Na última categoria, temos os que pouco mais são do que um desfiar de insultos a algumas líderes feministas ou ataques aos programas académicos de “estudos de género”. Quer se concorde ou não com ela, e eu encontrei-me numa e noutra situação por diversas vezes, a verdade é que somos sempre desafiados e é difícil não apreciar a sua retórica corrosiva.

Antes de terminar, gostaria de destacar os últimos dois capítulos. Aquele em que discute o aborto e no qual me revi bastante. Nesse texto, Paglia defende, recorrendo a argumentos libertários, o direito da mulher a abortar. Mas, simultaneamente, mostra uma enorme preocupação em perceber os argumentos contrários, evitando o insulto fácil. Ao contrário da grande maioria das feministas, reconhece que ser-se contra o direito ao aborto não é incompatível com ser-se feminista e mostra ter noção da ambiguidade ética de um assunto tão sensível como este. Na minha opinião, a insensibilidade de grande parte da esquerda (norte-americana) relativamente aos movimentos pró-vida é uma das responsáveis pela ascensão de Trump ao poder. Há cada vez mais eleitores nos EUA cuja única preocupação é o aborto e que, como tal, estão dispostos a votar em candidatos grotescos como Trump desde que estes se comprometam a nomear juízes para o Supremo Tribunal que dêem garantias de reverter a decisão de Roe vs Wade, de 1973, que tornou o aborto legal em todos os Estados dos EUA. E, como se vê, esta promessa de Trump tem sido cumprida.

O último capítulo é particularmente interessante por causa da actualidade nacional. É dedicadoa um retrato de Patti Smith feito por Robert Mapplethorpe. Esse mesmo, que acabou meio censurado pela Administração de Serralves. Obviamente que Paglia fala sobre o retrato e a força que transmite e não sobre o caso de Serralves. Mas seria muito interessante saber o que teria a dizer sobre o que se passou aqui no burgo. Aposto que diria que só quem não percebe o papel desafiador da arte pode defender que se confinem as imagens mais provocadoras a salas pré-determinadas.