Título: Mulheres Livres, Homens Livres
Autor: Camille Paglia
Editora: Quetzal
Páginas: 368
Preço: 18,80€

Mulheres Livres, Homens Livres chegou às livrarias no passado mês de julho. A edição é da Quetzal

É inegável a pertinência da publicação da antologia de ensaios e entrevistas de Camille Paglia, uma das mais célebres feministas dos nossos dias, numa altura em que se discute tanto e tão violentamente os novos rumos do feminismo. Numa discussão tão extremada como a que se vive hoje, é sempre revigorante encontrar uma feminista pró-aborto que defenda não só que o feminismo não deve alienar as mulheres (e os homens) que sejam pró-vida, mas que chegue até a defender que a posição pró-vida tem “uma certa superioridade moral” (p.351). Tal como é importante ver alguém defender que uma universidade só cumprirá o seu desígnio original quando acolher professores com pontos de vista diferentes em relação a todos os assuntos, para garantir uma verdadeira autenticidade do ensino, que não procure sanear e esterilizar o mundo académico, transformando-o num infantário. Será, então, a capacidade de olhar o feminismo de uma forma não entrincheirada a maior virtude de Paglia.

O ataque mais certeiro que faz ao feminismo é, assim, o de constantemente alienar donas de casa e mulheres conservadoras, tratando-as como traidoras da causa. Camille Paglia alerta ainda para a necessidade de a luta feminista abandonar o mundo meramente teórico e sectário em que vive, procurando universalizar-se, reconhecendo para isso que mulheres como Beyoncé ou Madonna terão mais a oferecer à causa do que todas as Judith Butlers do mundo. Talvez o melhor ensaio do livro, sob o ponto de vista do ataque a este sectarismo estéril de partes do feminismo, seja o dedicado a uma recensão de dois livros sobre sado-masoquismo, em que Paglia ridiculariza o discurso tolerante e liberal de um certo tipo de feminismo que, em virtude dessa mesma tolerância, se torna incapaz de olhar seriamente para o que quer que seja. Para além disso, ficamos a saber da existência de um tal de senhor Abdul, um homem de meia-idade que se afirma “bissexual tecnosádico” (p.253), o que não pode deixar de nos alegrar.

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No entanto, ainda que seja possível discernir todas estas virtudes em Camille Paglia, o feminismo anti-feminista da autora americana tem por vezes incoerências, contradições e raciocínios abusivos que impedem a adesão ao seu credo. Camille Paglia tanto sugere que “a sociedade não é criminosa, é antes a força que reprime o crime” (p.33) como de seguida, ao defender um feminismo herdeiro do capitalismo e do liberalismo, parece negar tudo o que constitui uma verdadeira sociedade, como a proteção aos elementos mais fracos e desprotegidos ou a congregação de esforços para combater injustiças sistémicas.

Camille Paglia tem ainda raciocínios absolutamente incompreensíveis ou infundados, que nunca procura sustentar com argumentos, como quando alega que a decadência da literatura e das artes que Paglia afirma ter ocorrido nos últimos anos se ficou a dever à impossibilidade de os jovens americanos beberem álcool antes de completarem vinte e um anos de idade (sem apresentar uma única justificação que defenda uma ideia tão bizarra) ou quando afirma:

“A ideia ocidental da história como um movimento propulsor em direção ao futuro, um desígnio progressivo ou providencial que atinge o seu auge na revelação de um Segundo Advento, é uma formulação masculina. Na minha opinião, nenhuma mulher poderia ter concebido tal ideia, visto que esta é uma estratégia de evasão da própria natureza na qual o homem teme ser apanhado”. (p.46)

Muitas vezes, aliás, Camille Paglia parece não sustentar os seus argumentos apenas porque gastou já demasiadas linhas a atacar outras feministas classificando-as de gordas, de “pufe inchado de comiseração venenosa” ou de “pomposa cadelinha de colo dos frequentadores de cafés parisienses”, o que em discussões pretensamente sérias não deixa de ser lamentável.

No entanto, o maior problema da argumentação de Camille Paglia prende-se precisamente na sua ideia de mulher e do papel do feminismo. Tal como algum do feminismo que critica, o feminismo anti-feminista de Camille Paglia parece ter como fim último o de criar condições às mulheres para que possam deixar de o ser. A feminilidade viril, amazónica e não sentimental de Paglia consiste em reconhecer que o mundo profissional é um mundo essencialmente masculino, mas ao qual a mulher deve ter a oportunidade de pertencer. O problema de raciocínios deste género é que faz da mulher uma intrusa tolerada. Assim, de acordo com as premissas de Paglia, a mulher apenas conseguirá triunfar quando deixar de o ser, sendo que a sua presença nas esferas relevantes da sociedade será sempre esporádica, uma vez que nunca ou muito raramente conseguirá ser mais homem do que os próprios homens. Também neste ponto a justificação para as premissas de Camille Paglia é pouco clara, uma vez que ainda que reconheçamos que a nossa sociedade foi fundada por homens, nem sempre é percetível exatamente de que forma é que uma mulher enquanto mulher está incapacitada para triunfar num mundo em que os atributos tendencialmente masculinos se tornam cada vez mais obsoletos.

A defesa de um feminismo inspirado em valores liberais e capitalistas leva a que Camille Paglia se manifeste contra todo e qualquer mecanismo de defesa ou proteção das mulheres, visto por ela como infantilizador e gerador de injustiças. Paglia alega ainda que proteger as mulheres leva a que estas se perpetuem na posição em que estão. Ainda que seja verdade que deixar as mulheres desprotegidas e forçadas a auto-sustentarem-se levará ao triunfo das mais fortes, Paglia esquece-se que apenas e só as mais fortes triunfarão. O raciocínio de Paglia será porventura aquele que no longo prazo levaria a uma verdadeira equidade, no entanto, como Keynes lembra, no longo prazo estaremos todos mortos. Particularmente aqueles que mais desprotegidos estão. Enviar as mulheres para a selva garante certamente que as mais fortes sobrevivam e que de lá saiam reforçadas. No entanto, o que acontece às mais fracas é bastante claro para quem tenha visto cinco minutos da saga Hunger Games.

A defesa de posições semelhantes às acima descritas levará, assim, Camille Paglia a alegar coisas totalmente absurdas como quando culpabiliza as vítimas de violação pelo seu comportamento irresponsável ou quando sustenta que “as mulheres têm progredido tanto na política — há mulheres presidentes de câmara, senadoras, governadoras e mesmo uma presidente da Câmara dos Representantes — que já não há necessidade, se é que alguma vez houve, de grandes marchas solidárias contra a discriminação  de género” (p.220), sugerindo sempre que o feminismo é algo que deve ser uma prioridade apenas quando nada mais prioritário exista (o que torna a decisão de lançar este livro em plena silly season ironicamente perfeita).

Finalmente, não haverá por certo um ensaio nesta antologia em que não se fale de Lacan, de Freud, de Foucault, de Anita Hill, de Madonna, de Germaine Greer, MacKinnon e Andrea Dworkin, bem como da importância de estudar biologia em estudos feministas, o que transforma a leitura do livro num maçador déjà vu.