Não tenho memória de momentos mais perplexos do que estes.

Tudo o que nos organizava como sociedade foi posto em causa de uma forma contundente e definitiva. O medo instalou-se em cada família, contaminando o País com uma velocidade ironicamente epidémica.

No meio do turbilhão de tudo, regressamos instintivamente aos nossos refúgios e tivemos que reaprender a cuidar de nós e dos outros.

Na sexta-feira de manhã com a Associação a que presido em “home office” tive a primeira ocasião de que recordo que reuniu todos os colaboradores de todo o País. Confesso, constrangido, que alguns não conhecia bem e outros sabia mal o que faziam. Sentia-se que o medo os fazia querer que esta nova forma de trabalho resultasse. E vieram ideias aos jorros, voluntarismos, promessas de tanto fazer. Percebi que havia uma luz, um caminho nesta nova forma de trabalhar e prometi a mim mesmo ensaiar as suas virtualidades quando tudo acabasse. Será que funcionaria da mesma forma se o factor medo não estivesse lá?

Por coerência, em casa, ficamos sem empregada e no regresso aos afazeres domésticos, à partilha e à divisão de tarefas, tropeçamos com a memória de um tempo onde eramos mais juntos, solidários, cuidadores uns dos outros. Mais Família, enfim, em tudo o que ela significa de protecção, disponibilidade e entrega. E percebemos outra vez o valor da caridade, esse amor indizível que dedicamos ao outro.

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Íamos crescendo por dentro e percebendo que a sociedade que construímos nas últimas décadas, na soberba da globalização e do individualismo, podia ser posta em causa, até nos seus pressupostos mais elementares.

Ouvimos o Primeiro Ministro Espanhol fechar Espanha e sentimos que havia uma consciência aguda de responsabilidade nos decisores do nosso Pais irmão. Era o Estado a querer funcionar, nos limites frágeis de tudo o que não existe para resistir a uma crise desta dimensão.

Ouvimos as músicas pungentes que se soltaram das varandas de Siena e inundaram Itália de esperança e de vida. Era a Nação a sacudir o medo e a dizer que está ali, unida, como nunca, para vencer um mal que ameaça a todos.

Esperamos as reacções tardias do nosso Governo mais preocupado em ouvir e partilhar responsabilidades do que em agir, assumindo a responsabilidade que lhe foi dada para Governar.

Esperamos um Presidente da República que no minuto seguinte a manifestar a sua disposição em dar beijinhos a quem lhe pedisse, se refugiou pateticamente numa varanda dizendo a todos que estava de quarentena voluntária. Marcelo tem dificuldade em mexer-se se lhe limitam o palco. O instinto do actor político, impele-o na demanda do flash mediático, da selfie ou da beijoca que agora não pode dar. Em vez de ser um actor de um guião que sempre dominou, pedem agora ao “Senhor Afectos” que não seja actor, mas que actue. E Marcelo, ao contrário, parece paralisado depois de lhe roubarem o guião habitual. Desta vez não faz de morto. Desta vez está realmente morto para uma acção e uma liderança que exigem já não sorrisos e beijinhos, mas coragem, lucidez, capacidade de mobilizar e de actuar.

Às 10h00 da noite, irrompem pela nossa janela as palmas dos portugueses. E foi um frenesim, um entusiasmo que nos fez sair de nós, que nos fez ter orgulho e sentir a certeza da nossa identidade, outra vez.

Portugal agradecia aos cuidadores e com isso dava o testemunho da disponibilidade individual e colectiva de cuidar do outro, provavelmente a forma mais rápida de vencer o vírus que embrulhou a vida de todos.

Muitas vezes na nossa história nos faltou a liderança certa. Na maioria dessas vezes a Nação mostrou ser a reserva de vida, de valor e da identidade que nos faz portugueses.

Foi isso que ontem, na desesperança de tudo, me animou muito. E me deu a certeza de que vamos vencer esta crise, apesar dos líderes, a quem teremos tempo e memória, de pedir contas quando a bonança vier.