Num dos melhores livros publicados no centenário da Primeira Grande Guerra Mundial, o historiador britânico Christopher Clark descreveu os líderes europeus como sonâmbulos: estavam vigilantes, mas não viam o horror que estavam prestes a trazer ao mundo. A Alemanha invadiu a Bélgica no dia 3 de Agosto de 1914 e, no dia seguinte, a Inglaterra declarou guerra à Alemanha. Quando partiram para a guerra, os soldados pensavam que estariam de volta pelo Natal. Como foi muito bem retratado no filme 1917, durante anos, milhões de europeus viveram e morreram nas trincheiras.

Nos dias sinistros que vivemos, o mal do mundo tem origem na natureza. Uma vez mais, a natureza mostrou-nos os limites da ciência e da tecnologia. Como em muitas crises anteriores, a capacidade de reação das instituições e a rapidez na resposta dos líderes serão decisivos.

Na Europa, os danos provocados pelo Covid-19 e a recuperação económica dependerão da resposta dos governos nacionais e da União Europeia, em particular do Banco Central Europeu.

No seguimento das medidas apresentadas pelo BCE na semana passada, o italiano Fabio Panetta, membro da Comissão Executiva, deu uma entrevista ao Corriere della Sera. Nessa entrevista, Panetta sublinhou que as consequências económicas da crise têm de ser assumidas sobretudo pelos governos nacionais. Em relação à política monetária, referiu que o BCE continuaria a apoiar as empresas e as famílias, mantendo as taxas de juro baixas. Referiu também as melhorias nas condições de financiamento dos bancos e o alargamento do programa de compras de activos (quantitative easing). Perante a insistência dos jornalistas sobre possíveis medidas para ajudar a Itália, o comissário insistiu nas medidas que já estão no terreno, as quais, acredita, garantirão toda a liquidez aos bancos. Com um verdadeiro tsunami a atingir a Europa e o seu país, este alto responsável do BCE responde como estivéssemos perante uma simples recessão. Enfim, em seu entender, tudo isto parece não passar de mais uma fase do ciclo económico.

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Espero que esta entrevista passe à história, como passaram à história milhares de burocratas. Infelizmente, existe a possibilidade de esta entrevista ficar como um documento histórico ilustrativo da incapacidade das instituições europeias compreenderem a natureza da crise Covid-19 e das medidas necessárias para a combater.

Em cima da pressão que já se fazia sentir nos mercados, Christine Lagarde declarou que não cabe ao BCE “reduzir diferenciais de taxas de juro”. Resultado? Disparou o prémio de risco da dívida pública de Itália, Portugal, Espanha e Grécia. Este é, para já, o sintoma mais visível da cegueira dos dirigentes europeus.

É possível que na semana passada os responsáveis do BCE ainda não conseguissem vislumbrar os efeitos do Covid-19 nas economias europeias. A crise financeira internacional começou em 2007, mas só no final de 2008 se percebeu a sua dimensão. Ninguém antecipou que o incumprimento num mercado relativamente pequeno como o mercado subprime – que representava 1/7 do crédito à habitação total – pudesse vir a causar uma crise financeira e económica global.

Nos últimos dias, ao vermos as economias a pararem bruscamente, com o recolhimento das pessoas em suas casas, é impossível não ver o impacto avassalador desta crise. As empresas não podem funcionar por razões de saúde pública ou por falta de mão-de-obra. Uma mão-de-obra a cuidar dos filhos devido ao fecho das escolas ou afectada pela doença. Por outro lado, o recolhimento das pessoas e o fecho do comércio elimina a possibilidade de consumo de muitos bens e serviços. Em ambos os casos, há uma fortíssima quebra das receitas. Isto já está a provocar despedimentos e cortes transversais nas despesas das empresas. Nestas despesas, incluir-se-ão o pagamento de impostos, de contribuições sociais e de prestações bancárias.

As medidas propostas pelo BCE visam dar liquidez ao sistema bancário. Este deve garantir liquidez às empresas e famílias. No entanto, as empresas que conseguirem sobreviver a este tsunami acabarão muito mais endividadas do que já estavam. E, com mais dívida, algumas empresas não serão viáveis. Entrarão em insolvência. O sistema bancário ficará, assim, ainda mais frágil. Os rácios de capital dos bancos podem ser alterados à luz das exigências do supervisor, mas a situação financeira e económica dos bancos continuará a piorar. Com o fardo adicional de dívida, as empresas sobreviventes terão mais dificuldade em retomar a actividade. A recuperação da economia tornar-se-á mais lenta e incerta.

Para além da enorme perda de receitas que estão a sofrer, os Estados vão ter um colossal aumento da despesa. Vimos isso ontem em Espanha. O país vizinho apresentou medidas num montante correspondente a cerca de 20% do seu PIB. Em consequência, a sua dívida em percentagem do PIB aumentará este ano bem mais do que 20 pontos percentuais.

Também as medidas anunciadas pela Reserva Federal dos Estados Unidos e pelo seu governo se equiparam às medidas extremas tomadas durante a crise financeira internacional. Em 2008, os Estados Unidos estancaram a crise com a tomada de medidas absolutamente radicais. Mas estas garantiram que em meados de 2009 a economia americana estava a sair da recessão. Iniciava a mais longa expansão económica da sua história. Que chegou ao fim.

Na UE, a crise financeira internacional prolongou-se por vários anos, com as ligações ‘diabólicas’ (diabolic-loop) existentes entre a dívida pública e os bancos e as falhas institucionais na União Económica e Monetária. Em julho de 2012, com a sua famosa afirmação de que faria o que fosse necessário para salvar o euro, Mario Draghi, o Governador do BCE, salvou o euro.

Os dirigentes europeus continuam a dizer que farão o que for necessário para salvar o euro. Desta vez, os mercados precisam mais do que palavras. Ontem ao final do dia, em resposta a um pedido do Primeiro-Ministro italiano Giuseppe Conte, Angela Merkel revelou que considera a possibilidade de joint bonds. Essa emissão de obrigações europeias permitiria a partilha de risco entre os países da zona euro. Estas ‘obrigações corona’ protegeriam os países mais afectados pelo Covid-19. Ao beneficiarem da credibilidade do Estado alemão, poderiam financiar-se com taxas de juro mais baixas. É um passo importante. Pode não ser suficiente.

Um conjunto de economistas, em que me incluo, das universidades de Coimbra, Lisboa, Minho e Nova apresentaram o manifesto A União Europeia e a democracia têm de estar à altura. Nesse manifesto, salientam a urgência de garantir que os Estados, as empresas e as famílias têm acesso a financiamento extraordinário, de modo a assegurar a sua solvabilidade. Um programa de emergência de larga escala requer um financiamento de emergência de larga escala. Neste contexto de enorme incerteza, será necessário recorrer à monetização do défice, tendo o BCE de ser autorizado a financiar directamente os Estados. Uma possibilidade é que o BCE o faça na forma de empréstimos de prazos bastante longos (mais de 50 anos) a taxas de juro próximas do zero. Os Estados Unidos já estão a discutir a possibilidade de imprimir moeda para entregar a alguns sectores da população e das empresas. Medidas drásticas como estas devem ser seriamente consideradas pelas autoridades políticas europeias e pelo BCE.

A União Europeia, provavelmente, não terá uma terceira oportunidade para demonstrar que o bem-estar das populações é a sua prioridade. Não é possível dizer que não vimos o perigo. Se vimos, temos de actuar. Não queremos ser os sonâmbulos do século XXI.