A revista do semanário Expresso do passado dia 10 de Março dedicava a capa a Karl Marx, sob o título “Marx vive”. Acrescentava que “a sua obra mudou o curso da História no século XX e, hoje, até os mais cépticos parecem rendidos ao homem que nasceu há 200 anos”. Dois artigos no interior da publicação — um de Francisco Louçã, outro de Luciano Amaral — corroboravam em tons diferentes aquela asserção principal: “Marx vive”, ou, no título de Luciano Amaral, “Somos todos marxistas”.

Pedro Norton terá respondido indirectamente a estas teses na revista Visão com um excelente artigo intitulado “Liberais somos todos nós”. E João César das Neves ripostou directamente no Diário de Notícias. Basicamente, recordou ele que

“O elemento chocante é que nessas longas elaborações ninguém refere o aspecto mais relevante: a tal mudança que Marx fez no século XX gerou milhões de mortos, miséria inaudita e as maiores catástrofes económicas de sempre, da colectivização da agricultura soviética ao “grande salto em frente” maoísta. É esquecimento de peso!”

Tem César das Neves toda a razão. E tem ainda razão quando recorda que essas tragédias foram provocadas em nome do marxismo e da sua crucial doutrina da luta de classes. Eu acrescentaria: daquilo que Marx designou como a doutrina científica da luta de classes.

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Ao contrário do que costuma ser dito sobre Marx, o que é distintivo da sua doutrina não é o impulso moral de indignação perante a pobreza das classes trabalhadoras. Esse impulso moral existiu em vastos movimentos sociais não marxistas e anti-marxistas, vários aliás de forte inspiração cristã. Estes movimentos foram responsáveis por profundas reformas sociais no capitalismo democrático — reformas que ocorreram sob os olhos dos próprios marxistas, enquanto estes pateticamente gritavam que o capitalismo não era reformável.

O que foi distintivo do marxismo foi a atribuição de um carácter alegadamente científico à teoria da luta de classes. Marx reclamou ter descoberto as leis do desenvolvimento histórico, à semelhança das leis do desenvolvimento da natureza orgânica conjecturadas por Darwin. O marxismo seria por isso uma “doutrina científica” que explicava toda a história da humanidade com base em leis inexoráveis. Daí decorria que o socialismo e o comunismo sucederiam inexoravelmente ao capitalismo, da mesma forma que este sucedera inexoravelmente ao feudalismo, como este sucedera ao regime esclavagista e este, por sua vez, sucedera ao “comunismo primitivo”.

Não vou aqui recordar em detalhe a demolidora crítica que Karl Popper fez a esta visão pretensamente científica da história. Popper simplesmente mostrou que esta teoria não é testável pelos factos, não podendo por isso ser científica — trata-se de mera profecia oracular.

Acresce que, nas poucas previsões específicas que fez, a teoria historicista de Marx foi rotundamente refutada pelos factos. (Basicamente, em vez de produzir a pauperização relativa e absoluta prevista por Marx, o capitalismo democrático retirou o maior número de pessoas da pobreza e ampliou as classes médias numa escala sem precedentes). Por outras palavras, os marxistas acreditavam que sabiam, sem saberem que acreditavam.

Mas Popper e outros autores fizeram uma adicional pergunta muito simples ao grandioso esquema marxista de explicação da história humana: mesmo que essa teoria fosse verdadeira, qual seria a razão moral para defender o comunismo? Essa razão, para ser de natureza moral, não poderia consistir apenas num juízo de facto estabelecendo a inexorabilidade do futuro advento do comunismo.

Esta é uma pergunta inconveniente. O “socialismo científico” de Marx sustentava que não existem padrões morais absolutos e intemporais. Todos são apenas sub-produto da época histórica, do nível de desenvolvimento das forças produtivas, e até dos interesses de cada classe. Sendo a classe operária a classe que representa o futuro — inexoravelmente determinado pelas leis “científicas” da história — os seus interesses exprimem a moral “cientificamente” ditada pelas leis do desenvolvimento histórico.

Por outras palavras, a moral do marxismo era a moral “científica” do desenvolvimento histórico. Estão bem de ver as consequências tremendamente imorais desta teoria da moral “científica”. Se não há padrões morais intemporais e independentes dos interesses de classe, qualquer grupo de fanáticos pode — e até deve — usar todos os meios ao seu alcance para impor aos outros as suas próprias crenças “científicas” sobre o futuro inexorável do desenvolvimento histórico.

Isto significa que o marxismo tentou abolir o fundamental conceito moral ocidental — oriundo de Atenas, Roma e Jerusalém — de obediência a regras gerais, imparciais, abstractas e iguais para todos. Em seu lugar, colocou a ideia imoral (em rigor, tribal) de uma “moral científica ditada pelas leis do desenvolvimento histórico”. É isto que explica a doutrina da legitimidade da revolução violenta para derrubar o chamado capitalismo — em rigor, para derrubar democracias liberais fundadas no primado da lei, igual para todos. É isso que explica os milhões de mortos provocados pelo marxismo no poder, libertado de escrúpulos morais imparciais através da doutrina da “moral científica do desenvolvimento histórico”.

Isto também explica por que motivo o marxismo nunca triunfou em democracias liberais, mas apenas em sociedades autocráticas, como as da Rússia e da China, que desconheciam o princípio da igual liberdade de todos — e de todas as “classes” — sob o primado da lei. Nessas sociedades autocráticas, o marxismo apenas reforçou — e deu uma legitimidade pretensamente “científica” — à cultura tribal dominante que não reconhece uma lei moral  imparcial acima das “tribos” (ou das “classes”, ou das cliques de oligarcas, ou dos membros do partido, ou das seitas de apaniguados).

Em suma: será verdade que “Marx vive”, como titulava a revista do Expresso? A resposta é simples: sim, possivelmente vive — mas apenas nas culturas políticas tribais que ignoram o primado da lei e só conhecem a lei da força. Mas nem todas as culturas políticas são tribais. Por esta razão, não somos todos marxistas.