1 Receio ter de confessar um tédio intelectual crescente perante a decrescente qualidade intelectual dos debates políticos que tendem a dominar a nossa actualidade noticiosa. Polidamente, tenho tentado resistir a mencionar a aridez (da ausência) do debate político nacional (para além das acusações mútuas sempre muito zangadas). Mas dificilmente podem ser ignorados os sinais tribalistas que recorrentemente nos chegam de outros países considerados “avançados” — como a América ou a França.

2 No caso da América, tínhamos assistido a uma caricata guerra tribal entre um radicalismo esquerdista “woke” e um radicalismo “trumpista”, alegadamente (e muito duvidosamente) conservador. 

A vitória eleitoral do centrista Joe Biden parecia anunciar a derrota dos tribalismos rivais. Não é seguro, no entanto, que o centrista Presidente Biden esteja a conseguir controlar a (por ele derrotada) ala “woke” do seu partido. E, no campo republicano, os recentes desenvolvimentos não são melhores (para dizer o mínimo).

Na Câmara dos Representantes, a bancada republicana acaba de substituir na sua liderança executiva Liz Cheney — uma severa crítica de Trump e consagrada conservadora na tradição de Ronald Reagan — por uma obediente de Trump, Elise Stefanik, todavia com um registo de votações à esquerda de Liz Cheney.

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Como escreveu o (conservador-liberal) Telegraph de Londres (onde Churchill costumava escrever), aquela decisão dos republicanos não faz qualquer sentido intelectual — é apenas uma expressão de obediência tribal a um líder tribal. Talvez esta severa expressão tribal — acrescentou o conservador-liberal Telegraph — possa ter marcado o renascimento de uma consistente oposição conservadora-liberal no Partido Republicano, contra o errático sr. Trump, de muito duvidosas tradições conservadoras.

3 Falemos agora de França, uma referência maior das nossas elites políticas lusitanas, da esquerda e da direita, nos séculos mais recentes — sobre cuja cultura política lamento ter de confessar o meu tranquilo e profundo cepticismo.

Leio nas notícias que houve recentemente em França duas cartas abertas subscritas por militares —alguns na reserva, outros não. O tema dessas cartas não residiu em assuntos relativos às Forças Armadas — o que seria aceitável — mas em magnos assuntos políticos nacionais. Dizem eles que existe um perigo de guerra civil em França e que as Forças Armadas defenderão a “sobrevivência do nosso país”.

Lamento ter de perguntar: isto é acerca de quê? Simplesmente parece uma declaração militar numa das repúblicas das bananas inesquecivelmente descritas nos livros de Tintin (onde pontuava o famoso general Tapioca, designação que em tempos apliquei ao sr. Trump). Ostensivamente, a primeira das duas cartas militares foi publicada no dia 21 de Abril, dia do 60º aniversário do golpe de estado falhado contra o patriota General Charles de Gaulle, por causa do seu apoio à independência da Argélia.

Lamento ter de dizer: isto é simplesmente patético e simplesmente terceiro-mundista. Parece apenas mais uma triste expressão daquilo que Alexis de Tocqueville designava, na sua França Natal, por “eterno conflito entre o Antigo Regime e a Revolução, entre a opressão e o abuso”.

4 Dois livros recentes alertam para a origem do crescimento destes tribalismos rivais, da direita e da esquerda, nas democracias liberais: o abandono da, ou a simples ignorância sobre, a nobre ideia de Ocidente.

Michael Kimmage, professor na Catholic University of America, escreveu The Abandonment of the West: The history of an idea in American foreign policy (Basic Books, 2020). Niall Ferguson, da Hoover Institution na Universidade de Stanford, acaba de publicar Doom: The Politics of Catastrophe (Penguin Books, 2021). Um artigo de Ferguson — intitulado “The China Model: Why is the West imitating Beijing?” — fez aliás em 8 de Maio a capa da Spectator de Londres.

Ambos condenam o crescimento dos tribalismos rivais nas nossas democracias. E ambos associam este fenómeno ao declínio, ou esquecimento, ou pura ignorância sobre a distintiva cultura política pluralista ocidental. Voltarei a este tema.

Postscriptum: Homenagens muito merecidas a Jorge Borges de Macedo e José Fernandes Fafe. Decorreu na passada quinta-feira, na Academia das Ciências de Lisboa, uma tocante homenagem a Jorge Borges de Macedo (1921-1996), assinalando o centenário do seu nascimento. No dia seguinte, sexta-feira, na Fundação Mário Soares e Maria Barroso, foi prestada também sentida homenagem a José Fernandes Fafe (1927-2017), por ocasião da apresentação da sua biografia, escrita por seu filho José Paulo Fafe. Tive o privilégio de conhecer e muito aprender com Jorge Borges de Macedo e José Fernandes Fafe — através dos seus escritos e de longas conversas, sempre muito estimulantes e inspiradoras. Recordo com particular carinho a mesa-redonda que moderei entre ambos, creio que em 1990, sobre o livro de José Fernandes Fafe, Nação, fim ou metamorfose? (Imprensa Nacional, 1990). Foi uma inesquecível aula magistral sobre a importância do Estado-nação e do sentimento patriótico — bem como sobre o papel crucial de ambos como base do multilateralismo (por contraste com o chamado “globalismo”) e da civilização ocidental.