São raros, muito raros os casos de condenações por negligência médica em Portugal. Nunca percebi se por uma questão de corporativismo durante a investigação e julgamento, se pela dificuldade real em perceber se o médico errou porque os erros fazem parte de todas as profissões, ou porque simplesmente foi mau profissional. Mas no caso do obstetra Artur Carvalho, ou o médico do bebé sem rosto — como ficará conhecido — parece-me que já não restam muitas dúvidas. As evidências mostram que tudo falhou: falhou o controlo do sistema de saúde, falhou a Ordem, falhou a Justiça e falhou-lhe a ele tudo: consciência e o profissionalismo.
Estou para escrever este artigo desde que o caso foi conhecido. A história de Rodrigo, o bebé sem rosto, é tão revoltante, que necessitava contudo de ponderação e investigação. Do benefício da dúvida. Por mais que saiba que aqueles pais jamais perdoarão e conseguirão ultrapassar o mal que lhes foi feito, e que sofrerão as consequências deste caso toda a vida, era preciso perceber o que tinha corrido mal.
Mas Rodrigo não estava, infelizmente só. Nem os pais dele. A sucessão de situações semelhantes é tal que quase não dá para acreditar.
O Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos tinha seis — seis — queixas na gaveta sobre este médico. Com a de Rodrigo, subiram para sete. Todas sobre negligência. Mas só agora, quando este caso ganhou mediatismo, o médico foi suspenso por haver “fortes indícios de que queixas poderão ter fundamento”.
Uma suspensão preventiva por 6 meses após a qual pode voltar a praticar medicina. Claro que também pode sempre reformar-se, graças aos seus 69 anos, digo eu, e viver como se nada fosse. Mas, mesmo assim, antes de conhecer tão grave pena, Artur Carvalho teve a lata de informar o bastonário da Ordem que se auto-suspendia de fazer ecografias, exames de 30 a 40 minutos que pelos vistos despachava em cinco, alguns das quais até trocando os relatórios das grávidas (segundo os relatos). Pena que não tivesse tomado tal decisão há uns bons anos.
Passe este humor negro, lê-se e quase não se acredita. Todos os especialistas ouvidos pelos jornais — que foram fazer o seu trabalho, ao contrário do Conselho Disciplinar — falam de erros grosseiros. Sim, há casos impossíveis de detectar em ecografias (questões coronárias, por exemplo). Sim, há outros que muitas vezes não são perceptíveis (algumas deficiências mentais). Mas — e este MAS é mesmo com maiúsculas –, há situações que são obrigatoriamente visíveis. Os rins. Os pulmões. O cérebro. O fémur. Os dedos. A boca. Os olhos. Era assim há mais de 20 anos quando fui mãe. Nem imagino como será agora e o quanto a tecnologia já evoluiu.
Não sei, não tenho conhecimentos suficientes, para saber se Artur Carvalho foi negligente em todos os casos já conhecidos. Mas dos que já se sabem (temo que haja mais), há vários em que este médico claramente errou. Mas não foi só ele. Foi todo o nosso sistema de saúde. Aquele que em 2007 achou que uma mãe em trabalho de parto de risco há horas podia esperar pela manhã seguinte com mais uns comprimidos. E que achou ainda, dez anos depois em tribunal, que foram cumpridos os procedimentos normais pelo médico e pelo hospital.
O sistema que não fiscaliza as clínicas onde se fazem exames determinantes sobre as novas vidas, como se fazer uma ecografia valesse tanto como fazer unhas de gel. Um sistema que só agora vai criar uma competência específica na área da ecografia de acompanhamento da gravidez.
O bastonário já pediu desculpa. A ministra ainda não. O médico muito menos. Eu peço. Sinto revolta e culpa por não conseguir fazer nada pelo que estão a passar ou já passaram estas crianças e estes pais. Os do Rodrigo. Da Diana. Da Luana. Da Sara. Do Bruno. Da Laura. Do Afonso. Do Vicente. Da Beatriz. E sabemos lá quantos mais.