Hélder Rosalino, quadro e ex-administrador do Banco de Portugal, foi secretário de Estado da Administração Pública, da equipa de Vítor Gaspar, num dos períodos mais difíceis da história recente do país, protagonizando reformas fundamentais no Estado, algumas das quais ainda hoje perduram e contribuem para o bom desempenho orçamental. Tomou na altura decisões difíceis, mas, apesar da sua discrição, a sua competência como gestor é reconhecida pelos seus pares e colaboradores. Nada é impossível, mas seria muito difícil encontrar alguém com um perfil tão adequado ao desafio ambicioso de fazer uma nova reforma do Estado que passa, entre outras coisas, pela fusão de cerca de uma dezena de secretarias gerais a desempenharem funções que podem ser concentradas.
O Governo está de parabéns pela escolha e merece todas as críticas pela forma como geriu a sua nomeação. Devia saber que o salário que lhe ia pagar – acima do auferido pelo primeiro-ministro –, a partir de uma exceção que fez ao decreto-lei, iria gerar críticas, especialmente num tempo em que os populismos estão em alta. Devia ter explicado previamente tudo e assumido o ónus da decisão, tal como no passado aconteceu, por exemplo, com a nomeação de Paulo Macedo para diretor-geral dos Impostos.
O erro original foi não ter explicado devidamente o que se pretende fazer com essa reforma da “organização, governação e prestação do setor público” prevista no programa do Governo. Viciados que andamos em questões financeiras, esquecemo-nos que os ganhos de eficiência, gerados por uma reorganização, ultrapassam frequentemente as poupanças contabilísticas, nomeadamente quando estamos a viver uma transição tecnológica.
O segundo erro, e mais grave, foi ter tentado disfarçar a contratação de Hélder Rosalino. O diploma em que altera o Decreto-Lei n.º 43-B/2024 de 2 de julho, para permitir pagar ao secretário-geral um salário superior ao do primeiro-ministro, embora tenha sido aprovado em Conselho de Ministros no dia 12 de Dezembro e promulgado pelo Presidente da República a 18 de Dezembro, é apenas publicado dia 26 de Dezembro. Mais grave ainda, está integrado num decreto-lei que tem como título “Procede à extinção, por fusão, da Secretaria-Geral do Ministério da Economia”. É preciso abrir o diploma para se perceber que, lá dentro, está uma alteração ao decreto-lei de 2 de Julho – que o Banco de Portugal nos fez o favor de alertar no comunicado emitido sábado 27 de Dezembro, após a notícia do Correio da Manhã sobre o salário do secretário-geral do Governo.
O que pretendia o Governo com estes truques básicos? Mais cedo ou mais tarde ir-se-ia saber que tinha sido criada uma exceção para contratar o gestor que queriam para a secretaria-geral. Como se isso não bastasse, deram a entender que o salário seria pago pelo Banco de Portugal, o que manifestamente não podia acontecer. Claro que Mário Centeno, que, esperemos, o Governo já percebeu não perde uma oportunidade para criticar quem nos governa agora, não deixou passar isso em claro. E explicou muito bem explicado o que estava em causa.
Não é a primeira vez e certamente não será a última que um Governo vai buscar quadros ao Banco de Portugal. E a lei dos gabinetes permite que se opte pela remuneração de origem, mas esse custo é sempre suportado pelo Estado e não pela entidade original. Esta pode processar o salário, mas tem de ser ressarcida – como aliás diz o Banco de Portugal no seu comunicado. Tudo isto devia ser mais do que do conhecimento do Governo, não se percebendo porque gerou a confusão, dando a entender que seria o banco central a pagar. A grande diferença, neste caso em relação a muitas outras contratações para o Governo, é que a remuneração de origem de Hélder Rosalino é superior à do primeiro-ministro e quase três vezes mais do que a prevista originalmente no diploma da criação da secretaria-geral.
Hélder Rosalino não terá aceitado ganhar muitíssimo menos, e o Governo aceitou as suas condições. A partir desse momento, Luís Montenegro tinha de ser capaz de explicar aos portugueses porque era importante ir buscar este quadro ao Banco de Portugal, em vez de se deixar enredar em todos este processo. Basicamente o Governo não foi competente na defesa das suas ideias e do seu projeto de reforma. E, quando se tenta defender, entra, como se lê no Público, num absurdo raciocínio de poupanças financeiras, em vez de se focar na mais-valia profissional da sua escolha e nos benefícios que poderia trazer ao funcionamento do Estado. E deixou que a sua escolha, com uma carreira de serviço público, fosse sendo queimada em praça pública.
Para além da falta de competência do Governo, o caso da escolha do secretário-geral é revelador de pelo menos dois aspectos estruturais bastante preocupantes. Um corresponde à distorção dos salários no universo da administração pública. O outro está relacionado com o problema crescente em atrair talento para o Estado.
O salário de origem de Hélder Rosalino mostra-nos, mais uma vez, a diferença de salários relativamente a outras entidades públicas. Mas, se no caso de Banco de Portugal existe o argumento da sua integração no Eurosistema, já é difícil perceber a prática salarial de outras entidades reguladoras muito menos relevantes, onde se pode ganhar, à vontade, mais do que o primeiro-ministro. O argumento, para as entidades reguladoras, tem sido sempre a independência e necessidade de atrair talento e competir, dentro de determinados limites, com o sector privado. Então temos de concluir que são os membros do Governo que estão muito mal pagos e é preciso ter coragem de acabar com isso – como aliás nos diz o presidente da Assembleia da República em entrevista ao Expresso.
E é daqui que partimos para o segundo problema, o da crescente dificuldade em atrair talento para as funções públicas. Não são apenas os salários que têm de ser mais elevados, é também a forma como olhamos para quem assume cargos públicos. A esmagadora maioria das pessoas que exerce cargos públicos dedica-se ao serviço público e não podemos nem devemos tratar todos por igual. Num quadro de escrutínio, temos de ser capazes de distinguir o trigo do joio e não maltratar todos de forma igual. Corremos o sério risco – se é que já lá não estamos – de estar a atrair os menos bons para funções públicas de elevada responsabilidade.
O Governo tem, e bem, um ambicioso plano de reestruturação organizativa que promete trazer eficiência – o que significa gastar menos, mas, mais importante, prestar melhores serviços. Foi capaz de identificar um quadro com experiência de gestão e conhecimento da administração pública para liderar essa reforma. Foi incapaz de gerir devidamente essa nomeação. Esperemos que ainda vá a tempo de salvar a situação, para vantagem de todos nós. Luís Montenegro tem de ser mais corajoso e mais capaz de nos explicar o que está a fazer. Ou corremos o risco de cair na inércia dos governos de António Costa.
PS: Helder Rosalino acabou por desistir do cargo depois deste texto estar escrito. Como se viu o Governo já não foi a tempo de corrigir a situação, até porque o PS resolveu ir também atrás do caso.