Falar em concorrência e competição é falar em aspetos naturais da vida, escolhas que qualquer um pode e deve ter e, efetivamente, tem. É um instinto que é essencial à condição humana: escolher para onde vamos, o que queremos ver, ouvir, comer, com quem nos queremos relacionar e de que maneira, etc. De maneira prática, é uma das ferramentas que gera a grandeza entre pares: a rivalidade de Edison e Tesla resultou em grandes avanços na tecnologia mundial, assim como a “corrida ao ouro” de Bill Gates e Steve Jobs. Em todas as áreas da sociedade, o espírito competitivo é frequentemente sinónimo da ultrapassagem de limites imaginários, o Homem é atraído pelo desafio: Ferrari e Lamborghini, Messi e Ronaldo, os exemplos são infindáveis. A possibilidade da reação positiva à ameaça da concorrência é uma lei natural tão sagrada como o próprio ar que respiramos: é condição humana.

Há uma área, ainda assim, que merece um olhar mais cuidado – e mais cuidadoso – antes que lhe seja aplicado este mesmo carimbo: a arte, tão diferente e tão única em relação a qualquer outra atividade social, é uma indústria que merece ser protegida deste espírito desenfreado pela concorrência constante. Se essa reação positiva à competição é lei natural, olhando para o seu impacto na arte, nomeadamente no cinema, com certeza se poderá conceder que a mesma foi conspurcada, levada ao limite, a um ponto destrutivo.

Algo está errado. Ao longo dos séculos a humanidade foi-se dotando de uma capacidade caricata, o Homem torna-se anti-Midas – presumindo que o termo é claro –, ganha o condão mágico que torna tudo aquilo (permitam-me o exagero) em que toca numa versão mais sombria de si mesma, uma impureza. A Amazónia virgem transformada em mesas de cabeceira, comunidades indígenas empregadas como atração de circo exótico, aspetos cruciais da vivência em sociedade extorquidos ao máximo até que a corda quebre e colapse sobre a sociedade. Pensemos na arte, pensemos no cinema. Se não é clara a categorização da arte como condição vital, podemos no mínimo conceder-lhe o mérito de tornar uma vida digna de ser vivida, forma de ir além de uma sobrevivência estéril. Considerada esta ideia, qualquer ataque à sua essência é um ataque ao coração da condição humana. Ora, a indústria do cinema está doente. Uma artéria crucial da nossa vivência, aquilo que a torna mais bela, está em perigo, e deve ser protegida a todo o custo.

O apelo pode parecer dramático em demasia, mas não o é: são inúmeros os exemplos claros que mostram como o cinema se está a deixar capturar de maneira negativa pela lei da competição. Aos olhos do público, a Sétima Arte tornou-se num jogo com pouquíssimos vencedores. Hoje, um filme que entre em rodagem é rapidamente comparado e categorizado consoante as classificações que lhes são dadas por ferramentas enciclopédicas (bastante úteis para esse efeito de pesquisa, diga-se), como o IMDb, Letterboxd ou Rotten Tomatoes, encaixotados numa nota de 0 a 10, com menos rigor do que um teste de matemática do 10º ano, como se tal escala numérica pudesse englobar todos os géneros, todas as diferentes obras de arte que todos os dias são pensadas, produzidas e lançadas ao público, como se dois filmes premiados com a mesma nota pudessem alguma vez ter alguma coisa em comum. Deixou de se considerar um grande filme como aquele que apresenta uma grande obra, passando a distinção para os campeões das bilheteiras. Cada longa-metragem não é hoje mais do que um mero jogador despido de valor num desporto em que apenas é considerado pela sua estatística, nunca pelo seu mérito individual e subjetivo.

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Olhemos para os Óscares e restantes cerimónias anuais. Todos os anos, centenas de filmes são nomeados para prémios específicos, e outras pequenas dezenas têm a sorte de ser coroadas vencedoras. Ora, talvez seja um problema que o vocabulário incluído na última frase não levante sobrancelhas nem cause estranheza: como pode ser um filme vencedor de alguma coisa que não o seu mérito próprio? Quando é que as obras de arte começaram a competir? A querer vencer – pior –, a querer derrotar? Nem mais. A existência de um vencedor implica que todos os outros são perdedores, algo que pode fazer sentido no desporto, mas que é preocupante no que à arte diz respeito. A arte não é desporto, não há jogo algum a ser vencido. O exemplo de The Irishman (2019), longa-metragem mais recente de Martin Scorsese, espelha o problema na perfeição: foi campeão dos nomeados (candidato a 10 prémios nos Óscares de 2019), saiu “derrotado”, não levando para casa a famosa estatueta em qualquer uma das categorias. O impressionante filme sobre a longa vida de um gangster irlandês, que pouco saberia sobre esta competição por pequenas estátuas de ouro, tornou-se, de repente, no grande perdedor da noite, numa cerimónia que se auto-intitulava como celebração do cinema. Se alguém perguntar a Scorsese a sua opinião sobre o assunto, por certo sorrirá, lembrando que o seu único interesse quando realiza e produz um filme é o de criar uma obra de arte que toque e fale à audiência de alguma maneira especial, o de contar uma história e apresentar personagens com que as pessoas se possam divertir, relacionar, aprender ou refletir. Um cavalo de corrida que tenha a vitória final como único desígnio deve ser sempre visto como bandeira vermelha para qualquer cinéfilo que se preze.

O espírito ocidental americanizado da concorrência desenfreada, que tudo consome e tudo aglutina como produto para venda, que apenas dá valor ao que possa ter valor comercial, que cataloga como inútil ou deslocado aquilo ou aquele que não cumpra o seu papel crucial na grande máquina do lucro, está longe de ser capaz de perceber a essência única de uma obra de cinema, muito menos de uma outra qualquer obra de arte. O que Hollywood hoje é, mais se assemelha a um Super-Bowl (ou a uma já famosa Superliga Europeia, no futebol), sempre à procura da próxima super-equipa, dos próximos super-atletas a partir dos quais se possam criar franchises inteiros com os seus símbolos e caras, mas sempre a olhar para os mesmos. O dinheiro é canalizado para os blockbusters porque as produtoras sabem que só filmes dessa categoria podem encher salas e justificar o investimento financeiro.

Note-se que não há aqui nenhuma crítica ao cinema espetáculo, desde os filmes de super-heróis às lutas contra grandes monstros, há espaço para todas as formas de arte, o que há é preocupação pelo espaço que cada um ocupa. Com as grandes produtoras a porem praticamente todos os seus esforços nestes filmes, tudo o resto se torna pequeno em comparação. Em entrevista à RayWork Productions no início do ano, o ator Ethan Hawke levantou esta mesma questão: se todo o espaço vai para esta parcela do cinema, o que será feito dos autores? Onde caberiam os jovens Ingmar Bergman e Stanley Kubrick na indústria atual? Filmes outrora admirados pelo público em geral, seriam hoje ignorados por não terem como se promover, ou simplesmente inexistentes, por não terem maneira de ser filmados e produzidos. Como podemos olhar com esperança para o futuro do cinema quando a maioria dos seus géneros e trabalhadores são ameaçados pela asfixia? Em maio deste ano, as salas de cinema em Times Square passavam 70 sessões por dia, separadas de 5 em 5 minutos, do filme Dr. Strange in the Multiverse of Madness, da Marvel. A pergunta continua a mesma: como prosperar sem ar para respirar?

Pior: esta ausência de incentivo à criatividade e falta de investimento no cinema pequeno-médio (que, relembro, noutra altura poderia ser facilmente considerado médio-grande) lança as grandes produtoras em loops intermináveis alimentados pela nostalgia. Olhemos para alguns dos filmes e séries mais badalados do último ano (e note-se que não se faz aqui qualquer crítica à qualidade dos listados, até porque alguns podem ser considerados projetos de grande mérito artístico): Better Call Saul, Obi-Wan Kenobi, House of the Dragon, The Rings of Power, Spider-Man: No Way Home, Doctor Strange in the Multiverse of Madness, Top Gun: Maverick, Jurassic World, The Batman. Se reconhecer algum dos nomes, não estranhe, porque todos são produto do reciclar de personagens ou histórias que fizeram sucesso no passado, do apelo ao sentimento pelo regresso de heróis de projetos antigos, do conforto de criar torres de dinheiro no alto dos maiores castelos já construídos. Para melhor contextualizar, os mencionados são sequelas/prequelas, remakes ou “ressuscitam” personagens dos seguintes projetos, respetivamente: Breaking Bad, Star Wars, Game of Thrones, Lord of the Rings, trilogia Spider-Man, X-Men, Top Gun, Jurassic Park, trilogia Dark Knight.

É mais fácil chamar a atenção do público se novos projetos aparecerem com o autocolante de algumas das obras mais conhecidas e admiradas das últimas décadas. São dezenas de projetos, todos no mesmo ano, todos presos nesta roda nostálgica que corta o caminho a novas produções e novas ideias. São resultado de uma cultura estéril, movida pelo lucro, nunca pela criatividade, e que está a matar, a passo e passo, aquilo a que hoje chamamos arte, mas que não é mais do que uma forma agradável de respirar. Já é raro convencer uma pessoa a trocar o ecrã do streaming pelas grandes salas. A este ritmo, a ida ao cinema corre o risco de, em poucas décadas, se tornar tão casual como uma ida à ópera.